Lucas tinha seis anos quando ele e seus pais, Marcílio e Ivone, se mudaram temporariamente para casa pastoral da Igreja Cristã da Purificação. Algumas igrejas cristãs possuem casas pastorais, não importa se são protestantes ou romanas essas casas servem primariamente de residência para pastores ou padres que trabalham integralmente na igreja. Em votação, o rebanho e reverendo Walter — bispo encarregado da Igreja Cristã da Purificação — decidiram em unanimidade pelo acolhimento da família. Em troca disso ele cuidaria de serviços básicos de manutenção das dependências da igreja. Apesar de ser propriedade da igreja, havia um muro que separava a casa da templo, que seguia por toda a lateral direita da casa. Quando a igreja comprou a casa à sua esquerda, decidiu manter o muro que dividia as duas construções, reduziu sua altura pela metade e abriu uma passagem com um pequeno portão de ferro, conectando os fundos da casa aos da igreja. Um dos quartos da casa era reservado para uso dos serviços da igreja, uma porta para os fundos foi aberta, adicionando ao quarto um acesso a área externa. Funcionava ali um departamento infantil com pequenas carteiras, parafernália escolar, alguns brinquedos e uma TV com vídeo cassete. O cômodo a menos não fazia falta, já que o casal só tinha um filho na época, os dois quartos restantes eram mais que suficientes.
Ivone tinha mais ou menos 25 anos e como muitas mulheres nos anos 90, ela abriu mão da carreira (enfermeira) ao casar. Logo depois do casamento, ainda no primeiro ano, veio a gravidez. Foi um fator determinante, na opinião do marido; seu argumento irrefutável era que ela deveria permanecer em casa e cuidar do bebê, afinal a escala plantonista não seria saudável para ele.
Lucas era uma criança calma, até demais pra idade. Às vezes, quando era bebê, sua mãe o acordava durante a noite por achar estranho um bebê de tão pouco tempo dormir tanto. Ele ia à uma escola a duas quadras de distância, mas Ivone achava que o ensino era fraco e o ensinava em casa. O menino era fascinado por letrinhas, aprendeu as letras do alfabeto com 3 anos e aos 4 ele já conseguia ler. Lucas não escrevia muito bem, mas isso não o impedia de tentar. Seu quarto tinha rabiscos coloridos em giz de cera nas quatro paredes, como era de se esperar. A diferença é que os garranchos eram palavras de verdade, escritas em ângulos esquisitos. Os rabiscos eram tantos que era possível notar a evolução de Lucas na escrita. A textura colorida do giz de cera nas paredes e os brinquedos coloridos davam até um charme ao quarto. Mais alto, nas paredes, alguns brinquedos ficavam guardados. Pendurada, uma guitarra para crianças, uma prateleira com carros enormes feitos de madeira e outra com alguns bonecos de plástico e uma de pano. Babalu era uma boneca velha, com cabelo de lã laranja, era lembrança da família de Ivone; na prateleira mais baixa havia outras miudezas com alto potencial de bagunçaria. Esses eram os “brinquedos de merecer”. Ivone acreditava que essa categoria de brinquedos era uma forma de compensar o bom comportamento e obediência do filho.
Marcílio não era um pai tão ausente, a escala de trabalho era cansativa, mas ele estava todo dia em casa antes das 20 h e era, de fato, amoroso com Lucas. O relacionamento com a esposa, entretanto, era instável e muitas vezes frio. Ivone aprendera com os anos que deixá-lo de lado era quase sempre a melhor opção. Os maiores conflitos do casal eram concernentes ao filho, quanto à correção e disciplina. Ele era adepto de uma postura mais rígida, pouco fundamentada em diálogo e mais no que ele acreditava ser correção bíblica, “a vara”, ele dizia.
Ivone não se opunha a umas palmadas, se fosse necessário, a questão para ela era a motivação da correção. Já que Marcílio dedicava tão pouco tempo em conhecer e acompanhar o desenvolvimento de Lucas, era desnecessária a impaciência com o comportamento infantil do menino. Mais desnecessário ainda era bater nele por causa dessa impaciência, afinal crianças agem como crianças. Além disso, Lucas sequer fazia traquinagens, em raras ocasiões ele rabiscava alguma parede proibida, sujava-se de terra ou desobedecia. Em situações como essa, o castigo no quarto sempre era eficaz como método de punição; até porque ele devia estar de pé em um canto do quarto e era proibido de brincar. Encarar os brinquedos na parede por 40 minutos parece uma tortura suficiente pra uma criança de 6 anos.
A igreja era uma construção que estava ali desde o início do bairro, pois o terreno onde fora construída havia sido comprado no período do loteamento. Ela tinha uma arquitetura não muito chamativa. Na frente pendia um letreiro de madeira com o nome da igreja gravado a mãos. As laterais eram ornadas por vitrais intercalando largos janelões e revestimento de pedra que se estendia por toda área externa. Essa simplicidade continuava no interior da igreja em uma decoração diminuta que se limitava aos poucos quadros nas paredes com paisagens de passagens bíblicas. O altar ficava sobre um tanque batismal que era coberto por um tablado de madeira com tapetes que eram retirados em cerimônias de batismo; era ornado com uma grande cruz lustrosa em madeira, cortinas e vasos de flores artificiais, trocados toda semana.
Todas as terças-feiras os fiéis se reuniam para o trabalho de oração. Ivone começava a limpar o santuário às 17 h, varria o chão do altar e da nave, espanava os bancos e outros móveis, e ornava o altar e a mesa de canto com toalhas de crochê. A rotina era a mesma todo dia de culto, ela deixava tudo pronto antes das 18 h, hora que os primeiros fiéis começariam a chegar. Marcílio chegava minutos após o início da reunião, se arrumava rápido e juntava-se à esposa e ao filho. A liturgia desse trabalho era simples, entoava-se alguns cânticos, os que quisessem fariam pedidos de oração à congregação e havia um período de oração de pelo menos cinquenta minutos a portas fechadas. Após esse período haveria um breve sermão, por volta de quarenta minutos, e então tudo se encerraria. Esse tipo de dinâmica — ou a falta dela — era algo complicado pra crianças, que ficavam logo entediadas. Por isso havia sempre uma pessoa responsável por entreter-las na ala infantil, anexa à igreja, com algum tipo de exercício ou lição bíblica.
O período de oração já passava da metade quando a porta da igreja abriu, um homem entrou e juntou-se aos irmãos na oração. Ele não era membro oficial da congregação mas sempre visitava os trabalhos de oração e purificação da igreja, tinha por volta dos 45 anos e sempre vinha sozinho, os congregados o conheciam como Irmão Cabral . A maioria dos fiéis orava de joelhos nos oratórios dos bancos. O homem se ajoelhou em um dos bancos e pôs-se a orar. Alguns minutos orando e o tal homem ficava cada vez mais envolvido em suas preces visivelmente carregadas de emoção e em momentos que ele falava mais alto, dava pra ouvir belas palavras de fé e intercessão. É muito comum em religiões cristãs, sobretudo denominações mais recentes, que pessoas entrem em um estado emotivo enquanto fazem suas preces. Talvez não seja uma escolha consciente, mas certamente há essa ideia de que o quebrantamento intensifica a súplica, uma espécie evidência de fé, talvez. Em denominações carismáticas ou renovadas há o que é chamado de “dom de línguas” ou “línguas estranhas”, pessoas entram num estado de transe e começam a proferir palavras de uma língua sem nunca tê-la estudado, há quem diga que são línguas dos anjos. Reuniões de oração e pregações que causam grande engajamento e entusiasmo na congregação costumam ser um ambiente fértil para essas manifestações.
O período de oração completa e os irmãos e irmãs se levantam para receberem o sermão do Reverendo Walter, alguns ainda comovidos pelas orações choram e murmuram suas adorações, incluindo Irmão Cabral. O discurso do bispo abordava a importância da perseverança para alcançar objetivos, as vitórias vêm por meio de resiliência e da disposição para ajudar uns aos outros. Cabral seguia em uma reação calorosa à mensagem pregada, exaltava-se em palavras de adoração misturadas com outras em uma língua desconhecida, intercaladas com choros. Muitos irmãos e irmãs reagiam de forma positiva às catarses dele, endossando a fé do homem que recebia a mensagem tão tocado.
Ivone assistia ao sermão pelo lado de fora, por um dos janelões laterais do templo. Naquela terça, ela havia sido incumbida de supervisionar as crianças, que estavam reunidas assistindo à fita de uma animação bíblica. Ela nunca foi uma pessoa que julgava o comportamento dos outros, “cada um com seu cada qual”, ela dizia. Mas algo no Irmão Cabral lhe parecia demasiado fora do lugar. Seu marido lhe censurou veementemente uma vez, ao ser questionado a respeito do comportamento performático do homem. Ivone sempre se sentia incerta na presença de Cabral e ao notar ele na plateia, se pegou revirando os olhos. Quando os excessos começaram do lado de dentro, ela preferiu a presença das crianças. O desenho animado com animais falantes que construíam um barco gigante pra sobreviver ao fim do mundo lhe pareceu mais edificante.
Walter avançava em sua pregação e o rebanho parecia ter sido contaminado pelo clima de elevação espiritual no qual Irmão Cabral se encontrava, pois uma dezena de pessoas se juntava em um crescendo de línguas estranhas. O barulho já era ouvido de dentro da sala das crianças, a meninada logo perdeu interesse no filme e alguns correram pra janela da salinha, liderados por Lucas. Estavam eriçados de curiosidade, tentando espiar a comoção no interior do templo pelos janelões da igreja, do outro lado do muro. O grupo de espectadores logo aumentou e o filme foi esquecido. Ivone tentava contê-los e até conseguiu afastá-los da janela, mas já havia perdido o controle. Brados de dentro da igreja eram imitados por alguns meninos; uns se dedicaram a imitar as línguas estranhas, berrando baboseiras sem sentido a plenos pulmões; outras crianças faziam danças desajeitadas, como as das mulheres que pulavam e rodopiavam dentro da igreja. Tanta algazarra pegou Ivone desprevenida, se via desafiada entre acalmar os ânimos da garotada conter o ímpeto de rir do caos.
O pequeno Lucas ria despudoradamente de toda a situação, ele era a única criança que ainda estava próxima à janela, empoleirado num banquinho, observando o que acontecia dentro da igreja. A pregação havia chegado ao final e a prece para encerrar a reunião seria feita, seguida de uma benção sacerdotal. A essa altura Ivone já tinha reganhado a atenção das crianças e explicava o que estava acontecendo na igreja. Lá dentro, o alto vozerio havia se acalmado a um zumbido baixo. De onde Lucas estava era possível ver os últimos bancos da igreja, onde Cabral estava. Tudo já estava calmo durante a oração final, mas algo no homem havia capturado atenção do menino, que o observava focado; talvez as roupas encharcadas em suor e o rosto inchado, ou olhos vermelhos, ou ainda o fato de Cabral estar tremendo um pouco. Ele passou de espasmos esporádicos para uma tremedeira em segundos. O homem parecia tentar refrear-se, até conseguiu por alguns instantes. Lucas encarava absorto. Ele se virou na direção do janelão mais próximo em busca de ar e inspirou profundamente, teve que se inclinar para frente em busca de equilíbrio, a tremedeira se intensificava novamente. Ainda antes do “amém”, Cabral arregalou os olhos vermelhos como sangue, quando seu olhar cruzou o do menino, o homem começou a tremer descontroladamente, de modo que ele descambou no banco da frente, levando consigo mais duas pessoas ao chão. Ele convulsionava violentamente e seus membros entortaram de forma esquisita para trás, suas falanges estralando e virando em ângulos anormais. Sua boca aberta, colada no pescoço e os olhos para cima. O garoto testemunhava atônito.
Os clamores da igreja cessaram imediatamente. Ivone foi até a janela da sala conferir o que havia acontecido, mas o campo de visão era limitado, era incomum a oração terminar sem o “amém” e a benção. Algo estava errado. Lucas estava plantado no banco, segurando firme a moldura da janela, os nós dos dedos pálidos, sua mãe não entendeu direito, ela saiu da sala a fim de ter um ponto de vista melhor em um janelão lateral da nave.
Pelo menos 6 pessoas se aglutinavam ao redor do homem que estrebuchava no chão, ele murmurava coisas que ninguém entendia. O Reverendo desceu apressadamente do púlpito para prestar socorro.
— Marta, liga pra emergência, por favor! — pediu com urgência. A mulher, que era sua esposa, correu em direção à tesouraria da igreja mas foi interrompida antes que pudesse alcançar a porta.
— Não, espera! — disse o marido. Ao chegar perto homem, os olhos manchados de vermelho viraram em sua direção, órbitas dessincronizadas. — Não não é físico, queridos. É espiritual — anunciou categórico.
Walter se abaixou próximo ao homem para toca-lo, ao sentir a aproximação Cabral parou totalmente de tremer e fez ecoar uma risada medonha, um ruído que rasgava-lhe a garganta e soava como dor aos ouvidos. O público se apavorou, gritavam “misericórdia!”, “ave maria!”, a maioria dos presentes pegaram seus pertences e se retiraram depressa.
Depois da evasão do rebanho da igreja, Ivone correu para as crianças. Ela ficou tão estarrecida com a cena que não notou mulheres passando, correndo em direção à sala das crianças; ao alcançar a sala, encontrou as mulheres e as ajudou a recolherem seus filhos e filhas. A partida deles reduziu o grupo de crianças para menos da metade. Ivone fechou a porta, agrupou as crianças na frente da TV e aumentou o volume ao máximo — pelo menos elas não perceberiam o pandemônio que se levantava a poucos metros de distância. As crianças não queriam saber do filme, começaram a fazer perguntas — “a oração já acabou?”, “por que o Matheus foi embora?”, “minha mãe já tá vindo?”. Antes que as perguntas se acumulassem em um bombardeio, ela se levantou, abriu a porta que dava acesso ao corredor da casa e sumiu de vista, voltando segundos mais tarde com um VHS em mãos. Sem dizer uma palavra, ela ejetou o filme que estava passava, órfão de atenção, e inseriu o que trouxe. Assim que castelo da logomarca inicial apareceu, as crianças se aquietaram na frente da TV em silêncio, o áudio do filme meramente abafando a agitação do templo. Esse era o filme preferido de Lucas e a fita foi um presente que ele “trabalhou” muito pra ganhar. Ivone percebeu que seu filho estava sentado em um banco próximo à janela aberta, ela foi até ele e finalmente se deu conta que ele havia visto todo o início da crise.
— Você tá bem, amor? — sondou ela.
— Tô, mãe — diz tranquilo. Lucas a considera por alguns instantes. — Ele vai morrer , né?— acrescentou.
— Vai não, meu filho. Ele só tá dodói. — Ivone pegou Lucas em seus braços. — Vem, vamos ver o filme do Simba. — Fechou a janela e sentou-se à TV com o filho.
Dentro da igreja, os que permaneceram além do bispo começaram interceder com as mãos para o alto — a esposa dele, Marcílio, três presbíteros, uma mulher e dois jovens. Marcílio foi em busca de alfaias ungidas para o ritual de expurgo, os presbíteros da igreja tomavam suas posições ao redor do atormentado e a mulher fechou as portas e janelas.
Caído no corredor central, o homem chacoalhava-se de um lado para o outro e no momento em que os presbíteros e o Reverendo se posicionaram, ele arqueou as costas para trás com os olhos arregalados. Sua boca aberta em um sorriso engasgado e os braços e pernas esticados pra trás, sacudindo a cabeça, as mãos e os pés freneticamente. Marcílio entregou um aspersório com óleo da terra santa e uma bíblia para Walter, que começou o rito declarando sua autoridade.
— Hostes espirituais da maldade e demônios, se prostrem diante da autoridade do povo santo! — bradou, golpeando o ar a sua frente com o aspersório.
Ao ser atingido pelo óleo, o corpo de Cabral se revira abruptamente, ainda arqueado, ergue-se a ponto de nivelar o rosto com o do Reverendo, a centímetros de distância.
— Acha que tem algum poder sobre nós? — sibilou ameaçador, em uma voz bitonal.
Cortados pelo som grotesco, os fiéis pararam as intercessões e abriram os olhos. Em movimentos óbvios e apressados, saíram do templo esbarrando ombros. Cabral gargalhava.
— Olha aí o seu povo santo — zombou. — Você não tem autoridade nenhuma, bispo de merda! — vociferou, cuspindo na cara de Walter. — Meia dúzia de língua estranha e já estavam achando que esse aqui era um homem santo — acusou.
— Amo como vocês lidam com as aparências — gargalhou o demônio.
Um vento gelado correu a igreja, as janelas chacoalharam e vitrais explodiram em um trovão. Os grandes vasos com flores no púlpito foram lançados no chão espalhando estilhaços de cerâmica branca por toda parte. Restava aos três que sobraram dentro da igreja a tarefa de lidar com o demônio. Walter pediu à esposa para juntar-se ao seu filho e começar uma intercessão. Depois de fechar as portas da igreja, ela ruma os fundos da propriedade em busca do filho.
Qualquer um que visse as cena na ala infantil notaria o desconforto extremo de Ivone. A despeito dos sons de destruição e os berros de ordem dos homens dentro do templo, as crianças estavam hipnotizadas pela história e canções do filme, grupo, aliás, que se reduziu a dupla Lucas e Júlio, de 7 anos. Os garotos sequer notaram quando Marta entrou na sala e sentou-se ao lado de Ivone.
— E aí, o que tá havendo? — inquiriu Ivone em baixa voz.
— Irmão Cabral tá endemoniado — cochichou com tremor. — Foi todo mundo embora, Ivone… Deixaram Walter e Marcílio pra expulsar. — Lágrimas desciam seu rosto, ela se inclinou na direção de Ivone.
— Ele tava no ar, as coisas voando pra cima… Flutuando, Ivone — explicou, deixando a amiga em choque.
As duas deram as mãos e iniciaram uma prece silenciosa.
Havia cacos de vidro por todo interior da nave, os vitrais que intercalavam os janelões estavam quase todos quebrados e muitas lâmpadas haviam sido estouradas. O vento circulava pela igreja pobremente iluminada em um silvo macabro. Walter e Marcílio esbravejavam palavras de ordem, com as mãos estendidas, clamando aos céus por ajuda para por um fim no sofrimento do homem. Ele arrastava pelos chãos e erguia-se no ar, por vezes, gritando obscenidades. Sangue se misturando ao suor na sua camisa.
— Diga seu nome, demônio! — ordenou Walter.
Cabral ria debochadamente.
— Imundo! Eu ordeno que diga seu nome! — vociferou.
Marcílio elevou a bíblia e conclamou passagens que falavam sobre jejuns e autoridade sobre demônios. O endemoniado caiu ao chão, lutava para manter-se estável, mas a cada palavra de lida, ele cambaleava mais. Walter perseverava em declarar sua autoridade e o poder trino.
— Diga seu nome! — repetiu.
Em meio a urros de dor, o homem caído contorcia-se para obedecer aos comandos. Walter percebeu o terreno ganhado e continuou:
— Fique de joelhos, se curve! Cara no pó, cão miserável.
Lentamente as ordens foram seguidas, Cabral estava sujeito aos comandos dos dois homens diante de si e ajoelhou-se, prostrado com rosto no chão. Ele tinha as mãos para trás numa algema invisível, gemia e rangia os dentes em indignação. Marcílio seguia lendo as escrituras, num encantamento sagrado e o bispo estendeu as mãos sobre o homem ajoelhado à sua frente.
— Diga seu nome!
O possuído levantou lentamente o tronco, encarando o Bispo, as feições de Cabral eram praticamente irreconhecíveis naquele estado. Um sorriso se formou lentamente na sua boca.
— Nosso nome é Legião — declarou em voz plural.
Silêncio se instaurou e por instantes só se ouviu o ar da noite.
A grande cruz de madeira que ficava atrás do púlpito, na parede, se desprendeu com um estampido, pairou no ar por um instante partiu-se em 2. Seus restos atingindo o chão do altar com um estrondo surdo que estremeceu o templo. Os restos da cruz atravessaram o tablado de madeira e foram ao fundo do batistério, espalhando água por toda parte.
Os homens de pé estavam trêmulos. Walter voltou a maldizer os demônios e declarar que os mandaria de volta para as profundezas do inferno, enquanto Marcílio seguia recitando as palavras bíblicas. Ele começaram um ritual exaustivo que se repetiria varias vezes naquela noite. Busca do controle, perguntar o nome para garantir a obediência da criatura e finalmente a expulsão.
Nem todo o volume da televisão conseguiu superar o som e o tremor nas paredes que seguiu a queda da cruz, no templo. O filme já estava em seus minutos finais quando os garotos foram surpreendidos pelo estrondo. Ivone e Marta se levantaram num sobressalto, elas trocaram um olhar nervoso. Ivone desligou a TV e guiou todos para a sala da casa. Ela foi para a cozinha preparar algo para comer enquanto esperavam o resultado da comoção na igreja ao lado. Lucas se prontificou a trazer um arsenal de brinquedos até a sala para escolher com Júlio o rumo da próxima brincadeira.
Já passava das duas da manhã e o caos parecia ter se acalmado, Ivone abriu a porta da sala infantil que dá acesso à área externa e dirigiu-se aos fundos da casa. Depois de lancharem ela e Marta ficaram intercedendo, enquanto os meninos brincavam no chão. Ela passou pelo portãozinho de ferro, deslocou-se até a parede para espreitar por uma abertura que horas antes não estaria ali, o espaço que era ocupado por um vitral. Dentro da igreja os dois estavam roucos, mas se mantinham firmes nas preces e profissão de passagens bíblicas. Ivone ponderou por um instante e julgou que o ambiente estava seguro para tentar falar com o marido. Encaminhou-se para fundos da igreja e entrou numa porta que se abria para a saleta onde funcionava a secretaria, lá havia a passagem que conectava o cômodo ao altar. Ela percorreu cuidadosamente a lateral do altar que estava inteira, processando o estrago e absorvendo as informações. O chão cintilava colorido a luz que vinha da rua e das poucas lâmpadas restantes. Ivone estava a poucos paços de distância de Marcílio quando foi notada. Ele lhe lançou um olhar de reprovação e gesticulou para que ela ficasse onde estava.
Walter continuava dando comandos ao homem caído.
— Diga seu nome, demônio! — exigiu o bispo. Cabral ofegava no chão, exaurido, os braços ainda atados por grilhões espirituais.
Marcílio apontou para a porta, pedindo que ela saísse e ela obedeceu. Ivone ainda tinha a mão na maçaneta da porta do altar quando o Irmão Cabral recomeçou os gemidos.
— IVOOONE!! — gritou o possesso.
Ela estancou e se virou para olhar. Ele estava deitado no chão. Marcílio continuava a proferir os textos bíblicos, a essa altura decorados.
— Saia daqui, Mulher! — demandou o demônio na boca do homem.
— Diga seu nome, pai da mentira! — decretou Walter.
O demônio riu.
— Essa não é a minha especialidade, reverendo — debochou. Cabral girou a cabeça para encarar Ivone. — Eu não gosto de você, mulher. — disse entre os dentes, ao mesmo tempo que se levantava, ameaçador.
Ivone estava em choque.
Marcílio intensificou seus bramidos e Walter acompanhou, ordenando que o demônio se retirasse do homem. Nada do que era feito ou dito parecia adiantar. Foi só quando Ivone começou fazer suas próprias preces, tomada de medo, que ele pareceu ceder. Ela caminhou na direção ao trio, isso o irritou ainda mais. O reverendo se aproveitou disso o forçou a ajoelhar-se, sangue escapava pelos joelhos da calça. Era aparente a dificuldade que o homem tinha para resistir.
— Diga agora o seu nome demônio!
Cabral fazia movimentos de negação com a cabeça, sacudindo com forca, mas foi compelido a obedecer. Ele disse seu nome entre os dentes, cerrados de fúria.
— MAIS ALTO! — berrou Walter.
— Baal-berite — disse o demônio.
— Baal-berite ! Baal-berite! — repetiu cheio de ódio, batendo a cabeça no chão, repleto de vidro.
— Baal-berite! Baal-berite! Baal-berite! — E metia a cara no chão cada vez que dizia seu próprio nome, com o empenho de quem queria abrir uma fenda no piso.
Os dois de pé correram pra amparar Cabral e impedir que o demônio o ferisse ainda mais, sangue escorria o rosto do homem que continuava a gritar o nome do demônio dentro de si, tentando se desvencilhar das mãos que o prendiam contra o chão, em posição vertical.
— Me soltem! — exigiu a criatura.
Tamanha era a indignação do espírito maligno que conseguiu levar ao chão consigo os dois homens que o mantinha ereto. Marcílio conseguiu se desvencilhar e agora prendia o possesso no chão, deitado de costas, prendendo-o pelo braço esquerdo. Walter espelhou o movimento e então ambos retomaram o rito. Em fúria, o demônio arrastou e levantou vários bancos da igreja, tal qual um terremoto, ele tentava lançar os bancos na direção dos dois.
Ivone havia atingido seu limite, a essa altura. Com movimentos precisos ela virou e percorreu o caminho de volta à casa em segundos. O que ela presenciou naquele dia a acompanharia como uma cicatriz pelo resto da vida. Na sala de sua casa estava tudo tão calmo e sereno que parecia outra dimensão, Marta estava sentada no sofá, pratos e copos vazios repousavam na mesa de café, no centro da sala, e os garotos dormiam profundamente no sofá. A expressão no rosto de Ivone era auto-explicativa. Marta sabia que ainda não era o fim e que provavelmente deveria continuar suas súplicas silenciosas. Ivone caminhou silenciosamente até seu filho, o pegou no colo e o levou para o quarto. Com muita delicadeza, ela o depositou em sua cama, ele continuou dormindo, alheio a tudo que estava acontecendo. A bênção da ignorância se encarregaria de enterrar as memórias daquele dia para ele, Ivone invejou isso naquele momento. Ela foi até a sala e trouxe para o quarto os carrinhos e os bonecos, os colocava no devido lugar. Não havia necessidade para pensamentos ordeiros agora, mas a tarefa lhe ajudaria a distrair a mente. Ivone guardou os carrinhos na prateleira de cima e os bonecos na prateleira de baixo, junto à boneca de pano velha. Apagou a luz ao sair do quarto, provavelmente iria pra cozinha lavar os pratos. Naquela noite Ivone havia deixado a janela de Lucas aberta. Janela que também apontava para o santuário. Uma bobagem, mas o demônio que habitava aquele homem se aproveitou disso. Antes que ele desse seu último grito rouco, antes de cair lânguido e inerte, antes de seu último fôlego. Antes que o espírito imundo deixasse livre o homem. Ele se transferiu para algo que viu por entre a abertura dos vitrais. Lá do outro lado, uma janela aberta da casa, uma boneca de pano na estante, cabelos alaranjados e um sorriso bordado em vermelho. E em seu último berro antes da inconsciência, Cabral se vê livre do demônio.
Uma brisa entra o quarto de Lucas pela janela aberta e atinge a prateleira, engolfando Babalu, que cai no chão. Impura.
Um lapso. Apenas um. É tudo o que leva para uma noite atribulada acabar afetando uma pessoa para o resto da vida. As identidades das personagens desse conto foram omitidas ou mudadas por uma questão de privacidade. Bem como a instituição religiosa que foi mencionada. Os eventos são reais.
Minha mãe, “Ivone”, sequer tinha noção do mal que causou quando esqueceu aquela janela aberta. Babalu era uma boneca muito velha, feita de retalhos pela bisavó da minha mãe. Como é de se esperar, a boneca foi possuída e me atormentou o juízo por muito tempo. Falando comigo e me incitando a fazer coisas ruins. Meu pai se tornou cada vez mais violento e passou a espancar a minha mãe com mais frequência, mas isso é mérito dele, não do demônio, tenho certeza. Na época ela estava grávida, mas nem sabia ainda. A coisa toda acabou num divórcio conturbado e num parto que deixou minha mãe à beira da morte. Meu irmão nasceu morto. Eu não planejava parar onde parei, a história continuava, como vocês podem ver e como o título da história sugere. Mas eu fui obrigado a parar e escrever uma mensagem.
Eu tinha acabado de escrever partes finais da expulsão do demônio. Estava particularmente exausto naquele dia, já era mais de 3am. Fui dormir, eu continuaria quando acordasse ou quando a procrastinação me permitisse, ainda tinha dias para o prazo de postagem neste blog. Eu tenho gatos, aprendi a ignorar os sons que escuto no meu quarto no meio da noite, porque eles costumam transitar nele durante a madrugada, mas o som estava rítmico. Um gato jamais faria aqueles sons tão precisos num teclado. Eu abri os olhos e fui recobrando a noção do meu entorno, checo o celular e ainda é quatro e pouco da manhã. Percebo uma penumbra no quarto que só poderia vir da tela do PC, que eu tinha certeza que havia desligado. Minha raiva de mim mesmo foi interrompida por um barulho, como se dezenas de cascavéis agitassem seus chocalhos. Eu me viro com raiva de mim e me deparo com a figura mais aterrorizante que já vi.
Uma criatura enorme, com 3 cabeças: uma como de um sapo, uma como de um gato e a do meio de um homem. Todas elas pareciam versões deturpadas dos animais que se assemelhavam, uma brincadeira de mal gosto com a Natureza. Possuíam chifres e estavam úmidas de um visco preta. A cabeça humana tinha uma pelugem preta, como um bode e olhos com pupilas horizontais. O corpo era forte e tinha chifres saindo dele também, para todos os lados, como se tivesse sido traspassado por várias lanças e as pontas tivessem ficado presas no corpo.
Eu tremia na cama, a criatura estava encurvada, como um corcunda, na frente do comutador e o teclado digitando sozinho. Eu não sabia o que fazer, não pedi pra isso acontecer, achei que pudesse ser meu cérebro me pregando peças, fechei os olhos e tentei voltar à realidade.
“Eu sei que você tá acordado, Daniel” a coisa disse.
A fala dele era terrível, as três cabeças falavam ao mesmo tempo, como um coral distorcido. Soava fisicamente e dentro do meu crânio. Eu permaneci parado e ele virou a cabeça como de sapo na minha direção.
“Vem aqui!” mandou.
Meu corpo não me obedecia, eu queria permanecer deitado, desaparecer pra dentro da parede, mas minhas pernas e braços obedeciam à Besta.
“Buscai e encontrarás, batei e vos será aberto” recitou e aquilo e me soava familiar.
“Achou que ia falar de mim e eu não ia te encontrar de novo?” falou na exata voz da boneca Babalu. Eu não consegui respirar, a visão turva de lágrimas.
Minhas pernas andaram em direção ao demônio contra minhas ordens. Eu só queria sair dali. Isso só podia ser um pesadelo. Minha respiração sufocou com o cheiro de algo podre. A digitação cessou e ele se virou totalmente para mim, o som de chocalho mais uma vez, de perto era claro que não era um chocalho eram suas dezenas e dezenas de chifres e cornos atritando uns com os outros. Ele se inclinou na minha direção, a cabeça “humana” reluzindo na luz do computador, parecia que seu corpo estava constantemente escorrendo o visco. Se aproximou de mim e disse:
“Já que você, tão voluntariamente, falar dos meus feitos. Será meu instrumento.”
Meu corpo caminhou até o computador e minhas mãos foram direto para as teclas, pairando, a postos. Atrás de mim o demônio começou a falar em uma língua que eu não conhecia e minhas mãos imediatamente começaram a digitar, possuídas. Na tela, frases em um alfabeto estranho de traços e pontos começaram a encher a página de trás para frente, dando continuidade no trabalho do demônio. Eu conseguia sentir os cornos no corpo do demônio se movimentando e tocando minhas costas. O demônio se calou e as mãos pararam, duras.
Ganchos invisíveis me apertaram por dentro, me seguraram pelos intestinos e me ergueram no ar, o sangue coagulando nas minhas veias. Meu rosto estava a centímetros do demônio. A cabeça do meio e as outras duas ladeando. Eu estava cercado, tomado de dor. Eu chorava. Me agitava, tentando me desvencilhar das garras da coisa, gritava e meus gritos não produziam som algum.
“Você vai compartilhar esta mensagem que eu escrevi junto com sua história” as cabeças falaram, e não era um pedido.
“Se você não disseminar minha palavra, isso vai acontecer com a sua mãe”.
Nesse momento os chifres no abdômen dele se movimentam e alinharam-se, se afastando, abrindo como cílios, revelando uma esfíncter purulenta do tamanho de uma mão onde deveria haver um umbigo. A cavidade se abre e deixa cair uma cabeça. Nesse momento ele me soltou no chão, em cima do seu dejeto. A luz era muito fraca, mas era impossível não reconhecer a carranca de pavor na minha frente. Os olhos desfocados do meu pai me encaravam, como uma alerta da palavra de Baal-berite. Depois disso eu estava sozinho no quarto.
Eu realmente não tenho escolha, me perdoem.
אני בעל ברית, שד גדול של הצו השני. אני אוכלת משפחה. אני מפקד של ארבעים לגיונות של שדים. הקריאה שלך של טקסט זה עושה לך ראוי נוכחות שלי בחיים שלך מביא אותי לבית שלך. אתה תהיה עד להרס של המשפחה שלך. המגפה תבוא אל הדלת שלך. אסון לא יעזוב את משפחתו עד הדור החמישי. חכה למוות. זה אני שמדבר, בעל ברית. זה מאוחר מדי בשבילך.
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