A noite, a chuva, o trânsito intenso de
automóveis, o barulho de buzinas, vendedores
ambulantes correndo entre os carros com doces ou
pizzas, letreiros luminosos e outdoors, peças
publicitárias freneticamente lançadas sobre a
morosidade do deslocamento, tudo isso poderia
irritar uma pessoa que sai do trabalho para casa.
Mais ainda alguém que precisa chegar rápido para tentar encontrar uma cena de crime intacta, não modificada pela vizinhança, por curiosos ou mesmo pela própria polícia. Mais uma sexta-feira estressante, mais uma sexta-feira normal para o policial civil Roberto Donato.
Mais ainda alguém que precisa chegar rápido para tentar encontrar uma cena de crime intacta, não modificada pela vizinhança, por curiosos ou mesmo pela própria polícia. Mais uma sexta-feira estressante, mais uma sexta-feira normal para o policial civil Roberto Donato.
Na Agamenon Magalhães não há trégua, a paciência é
fundamental, tanto quanto os cigarros, o som do
rádio no programa de notícias locais, ou a
inexistente sirene, o ineficiente ITEP, o colete à
prova de balas e se aproximar da estação Joanna Bezerra, na
comunidade do COC.
Ao sair do carro, seus passos apressados faziam
oposição à postura cabisbaixa e incrédula dos
quatro policiais militares, das dezenas de
curiosos alvoroçados, da senhora desesperada que
chorava contida por várias pessoas, impedida de
entrar na humilde casa, provável local da
ocorrência.
- Qual a ocorrência? Perguntou Roberto
Após mostrar sua identificação, um dos policiais
militares responde como quem tem um engasgo na
boca, sem olhar para Roberto:
- Não dá para determinar.
Roberto se dirige para a casa, impaciente, crendo
encontrar mais um caso de acerto de contas, mais
uma simples estatística da guerra das drogas. Mas
seu olhar é puro espanto, seu corpo quase
convulsiona, ao encontrar uma enorme poça de
sangue, manchas de sangue esguichado por todas as
paredes, e dois corpos mutilados e irreconhecíveis
dentro da sala da pequena casa.
A mancha de sangue
vem de outro cômodo, como se os corpos fossem
arrastados. Com cuidado, caminhando lateralmente
ao sangue, vê no outro cômodo uma cama, também
encharcada de sangue.
Ele tira do bolso seu telefone celular, e passa a
fotografar tudo. Envia as fotos por meio de um
aplicativo de mensagens, e escreve:
“Não existe marca de passos, manchas de mãos nas
paredes, preciso de uma equipe técnica”.
Ao sair, se dirige aos militares e pergunta sobre
circunstâncias. Eles apontam para o mais próximo
que há de uma testemunha, a pessoa que chamou a
polícia e encontrou os corpos, uma senhora de
idade, ainda inconsolável, histérica, hora
tentando entrar na cena da ocorrência, em outros
momentos é acudida ao tentar desesperada se jogar
no chão. Roberto dá ordem para que a polícia
militar chame reforços, disperse curiosos, usa seu
telefone celular nervoso, conversa e pede ajuda
para colegas.
Não foi, definitivamente, uma sexta-feira
normal. De normal, só e somente só a
ausência de qualquer delegado ou outro membro da
polícia judiciária, do órgão que deveria
investigar, da Polícia Civil.
A cereja do bolo, definitivamente estava entre o
choro, o soluço e a voz da senhora desesperada,
que balbucia as palavras “Lua de mel”.
A noite se alonga, nem a polícia técnica e nem os
reforços se apresentam, ao contrário da imprensa,
de repórteres, de mais curiosos. O decorrer do
tempo faz os cigarros de Roberto acabarem, não tão
rápido quanto sua paciência. O único alento da
noite é uma vizinha que serve café aos policiais,
e apenas o amanhecer do dia trás mais uma viatura
da polícia militar, e a polícia técnica.
“Um
sábado perfeito para um banho de mar em Boa
Viagem”, pensa Roberto.
Na delegacia o caso chama pouca atenção, a não ser
pela resistência de Roberto em escrever uma causa
mortis não identificada, ou atribuir ao crime a
razão de acerto de contas entre usuários e
traficantes. Colegas o olham com o desprezo de
sempre, aquele que apenas os policiais “Caxias”
merecem. Ao menos ele não atrapalharia a rotina,
“os negócios”, era o motivo pelo qual a teimosia
de Roberto era “perdoada” por todos.
Os minutos passavam, as horas giravam no relógio
da parede, quando um telefonema leva Roberto a
sair ligeiro. No ITEP Roberto percebe que as
circunstâncias não usuais do crime despertaram a
curiosidade dos peritos.
O laudo assustou a todos, encontraram digitais
somente dos amantes, e a autopsia não mostrava
nenhuma substância suspeita, sequer álcool. Os
estômagos das vítimas, de toda forma, estavam
cheios de carne, do marido cheio da carne da
esposa, da esposa cheia da carne do amante. Os
dentes, as unhas, cheias das carnes um da outra, e
visse versa.
Aquele 12 de junho não era como os outros. As
explicações não satisfaziam Roberto, e a equipe da
delegacia de homicídios tinha uma atitude prática:
Uma nova droga chegava ao mercado do Recife.
Somente uma nova substância, explicavam seus
colegas, faria duas pessoas se comer até a morte,
literalmente.
Ao fim do sábado, Roberto estava cansado demais
para dormir, e procurou a solidão de uma Igreja
para rezar, pensar, refletir. Ao entrar na Matriz
de Casa Forte, ouve o Padre ao celebrar um
casamento:
“Eu vos declaro Marido e Mulher, até que a morte
os separe”.
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