ATO I
O bando se uniu dentro do interior vazio de uma árvore morta. O som das gotas ecoava através das paredes ressecadas que os defendiam. Eles temiam a chuva pois conheciam suas propriedades corrosivas, e embora a usassem para limpar a ferrugem que eventualmente se formava em suas armas, receavam o que ela fazia com suas peles. O líder do bando, e também o mais velho, o Homem de Vela, era para os demais a lembrança viva do que acontecia quando se descuidavam em tempos de céu fechado. A sua careca e seu único olho bom eram uma advertência melhor do que qualquer promessa de castigo.
Assim que a chuva parou, de pouco a pouco, eles se retiraram do esconderijo. Eram 5 ao todo, lanças erguidas em mãos, algo que para eles já era instintivo. As sandálias de escamas e folhas que usavam protegiam a sola endurecida de seus pés da fina camada de água acidificada que permeava a grama áspera sob onde pisavam.
O Homem de Vela se aproximou individualmente de cada outro membro do bando, checando se alguém havia se ferido. Com cuidado inspecionava seus conterrâneos, pedia-lhes que mostrassem seus braços e tirassem suas máscaras, expondo seus rostos. Assim que conferiu que ninguém havia sido tocado pela água ardente, eles seguiram seu caminho.
A floresta na qual tentavam penetrar era de longe a maior e mais densa que qualquer um na história da tribo jamais havia se deparado. Suas árvores eram enormes, obeliscos por si próprias e tão largas que seriam necessários 20 dos homens mais compridos para abraça-las. A madeira da qual eram feitas também era extremamente dura e seca, era necessário lâminas especiais, finas como bisturis e feitas do mesmo material, para cortá-las. As fibras e os nervos que compunham os caules se mostravam demasiado grossos e interligados para serem rompidos por simples mãos humanas.
Devido a essa extrema resistência do arvoredo e seus galhos, o progresso era longo e entediante. Paravam constantemente quando se deparavam com caminhos muito estreitos e demoravam quase horas para abrir brechas neles. Embora não expressassem isso, constantemente se perguntavam se toda a jornada valeria a pena. Buscavam por um novo lar e não carregavam nada além de suas armas e vestimentas consigo, todo o resto foi deixado para trás com suas vilas. Dentro dos 5 existia toda a cultura de um povo dizimado pela doença, carregavam consigo a missão de sobreviver, não apenas por si próprios, mas também por todos aqueles dos quais lhes foram tirados.
Coletivamente recordavam os momentos anteriores a sua diáspora. Os 5 se descobrindo como os últimos sobreviventes saudáveis e a tarefa que lhes foi deixada de queimar o que sobrou de seus decrépitos lares. Deixaram seus pertences queimar junto com os corpos e os lares para que seus entes queridos pudessem usufruir deles em morte, assim como dizia a tradição. Tentavam esconder, mas os empecilhos da jornada não haviam calado os sentimentos de tristeza que ainda perduravam dentro de si.
A fome roía seus estômagos como um rato. Buscavam desesperadamente por alimento, naquele caso, os parasitas que espreitavam aquelas matas. Eram pequenas criaturas cefalópodes, viscosas e quadrúpedes, não muito maiores que um gato. Possuíam uma única presa afiada que usavam para sugar nutrientes do chão, o que os fazia um pouco ameaçadores para caçadores menos experientes. Não demoraram muito para encontrar um deles, mesmo em meio a uma vegetação tão densa, mas o achado não foi de muita comemoração.
O gosto da carne do animal era no mínimo asqueroso, feito apenas um pouco mais tolerável quando a mesma era assada no fogo. A quantidade que tinham com certeza não seria o bastante para saciar todos, então tentaram distribuir da melhor maneira possível. O Homem de Vela se ofereceu para pegar o menor pedaço, e após comer se retirou do resto do grupo para um canto isolado, onde poderia coletar seus pensamentos sozinhos. O resto comeu na ordem de grandeza do mais novo para mais velho. Com suas barrigas ainda roncando, eles seguiram em frente.
A rotina logo se consolidou e eles se viram abrindo caminho e caçando durante o dia, para de noite erguerem seus acampamentos e acenderem sua fogueira. Assim que as chamas eram erguidas e o grupo se arrumava numa roda para se esquentar, o Homem de Vela tomava a oportunidade para compartilhar histórias de seus tempos de mais novo, contos de caçadas e embates de décadas anteriores ao nascimento de muitos dos que estavam ali. Numa situação sombria como a que estavam, ele viu como adequado compartilhar com os outros sua história mais querida.
Um dia, quando ainda tinha cabelo, estava buscando por água quando se deparou com o cadáver apodrecido de uma divindade. Era a coisa mais imensa que havia visto em sua vida. Jamais tendo visto o oceano, ele não saberia apontar a semelhança que a criatura apresentava a um peixe, sendo assim o formato da besta era quase incompreensível. Ela não possuía narinas por onde respirar, nem mesmo um rosto propriamente dito. O mais próximo que ela possuía de uma semblante eram seus olhos, redondos e escuros como dois eclipses, porém a sensação de morte que passavam deixava claro que não havia um sol por trás da escuridão.
Suas entranhas estavam expostas e ao se aproximar mais, o Homem de Vela pode ver que ainda estavam úmidas, mas o fedor insuportável logo fez com que tivesse que se afastar. Olhando ao seu redor, ele não compreendia como aquela criatura havia parado ali. Não havia marcas de patas no chão, nem qualquer rastro de sangue imprimindo um caminho para dentro da mata. Da maneira como ela estava, parecia que ela havia simplesmente caído do céu.
Quando retornou a sua vila, sem trazer a água que havia ido buscar, mentiu para os outros dizendo ter se perdido no caminho e guardou aquela experiência consigo até aquele dia. De volta a roda, os outros o observavam atônitos. Desde pequenos lhes era ensinado através da tradição sobre a existência de grandes deuses que viviam no solo abaixo e os inimagináveis demônios que viviam no céu acima. Aquela era a primeira vez que a maioria fazia contato com alguém que clamava ter visto um deles em vida.
As perguntas foram numerosas e diversas, mas o Homem de Vela dispensou a todas. A sua intenção com a história não era de provocar a indagação dos outros, mas sim de criar esperança. Pois se os demônios realmente existiam, então o mesmo também deveria ser o caso para os deuses benevolentes da terra.
Daquele dia em diante, a esperança de encontrar um novo lar não parecia mais apenas um sonho distante, e o grupo passou a avançar pela floresta com um vigor revitalizado, inspirados pelas palavras daquele, que dentre todos, havia visto mais do mundo. Mesmo depois que a fraqueza e a idade levaram o homem de vela embora, não perderam sua coragem e juraram erguer um monumento em sua homenagem quando firmassem seu novo lar.
Procederam-se meses de exploração quando se depararam com algo no horizonte. Era tão imenso que tapava a vista do sol na maior parte do dia, projetando uma enorme sombra esférica sobre uma considerável parte da floresta. Passaram semanas andando no escuro até descobrirem do que o fenômeno se tratava, subindo nas árvores para vê-lo em melhor escala. Perceberam que era na verdade uma gigantesca montanha, mas não como as outras gigantescas montanhas, essa era tão enorme que um pequeno continente poderia existir em seu topo. Seu formato arredondado os fez lembrar o ventre de uma mulher grávida, meses antes da hora do parto, e conforme se aproximavam, e consequentemente viam ela aumentar em tamanho, flertavam com a ideia de que um bebê um dia nasceria dali, e a terra se tornaria o lar de gigantes.
Próximos da base da montanha, perto de iniciar a longa escalada da qual levariam anos para alcançar o topo, começaram a sentir palpitações no solo que eram mais pequenos movimentos de terra do que terremotos propriamente ditos. Rachaduras apareciam de súbito na terra abaixo de seus pés e árvores caiam sozinhas na calada da noite como se o material duro do qual eram feitas fosse quebradiço como talco. Também nunca haviam encontrado tantos parasitas antes em vida. Eles andavam em bandos de pelo menos 20 às vezes, em variações de tamanho cada vez mais díspares, ao ponto em que os maiores do grupo representavam verdadeiro perigo para os quatro sobreviventes.
Quando perfuravam o solo emitiam um som alto de sucção, como recém-nascidos mamando vorazmente nos seios da mãe. Quando terminavam, o buraco deixado para trás liberava um líquido grosso de coloração escura. Ele tanto cheirava quanto tinha gosto de ferro, como se fosse metal derretido, escondido embaixo da terra.
A quantidade de parasitas e o tamanho deles só aumentava progressivamente conforme subiam a montanha. Após 2 anos observaram pela primeira vez os que eram capazes de voar e que usavam essa habilidade para bombardear o solo, perfurando ainda mais profundamente do que seus irmãos terrestres. O líquido preto era expelido do ferimento, que naquela altitude jorrava como um pequeno hidrante, misturava-se com as penas brancas deixadas pelas bestas e escorria montanha abaixo, onde se juntava em poças donde parasitas menores bebiam.
Os 4 achavam aquelas criaturas tão hediondas que haviam passado a repudiar o ato de comê-las e o faziam com uma expressão de extremo desgosto em seus rostos. Haviam abandonado suas máscaras meses atrás devido à dificuldade que tinham de respirar certos dias. Conforme os anos terminavam e começavam, numa dança infatigável, o grupo ia esquecendo de seu objetivo e da memória do homem que havia plantado sua semente em suas ideias.
Pensavam no quão longe estavam de onde um dia vivera seu povo, e no novo lar que haviam encontrado uns com os outros, desoladamente perdidos no que antes era uma incógnita, mas que agora havia se tornado uma terra mãe. As gigantescas árvores e a montanha do ventre sendo seu berço, e os parasitas seus combatentes nativos.
Mais acima, no ponto onde as nuvens estavam abaixo de seus pés e o resto do mundo fora do alcance de seus olhos, fizeram sua parada final. Deixaram para trás sua história, construíram novas casas e tiveram novos filhos. Um memorial ao companheiro perdido e já em muito esquecido foi erguido no centro de seu novo lar, e conforme as gerações passavam seu significado se perdeu até ser apenas um resquício dos pais fundadores.
Quando até mesmo a própria vila foi esquecida, substituída por cidades, maiores e ainda mais altas, do memorial sobraram apenas pedras sem nome.
ATO II
Expelido do turbilhão estrelar que era a névoa interdimensional progenitora, a besta fez seu caminho ardente em direção ao seu inimigo. Seu formato assimétrico declarava guerra em cada escama e pena que se erguia de sua carne malformada para atacar. O impacto foi tremendo, o bastante para alterar a órbita do inimigo em alguns graus. A dor que o rival sentiu foi o bastante para acordá-lo de seu descanso inacabável, e todo o universo estava prestes a se lembrar porque ele era o Rei dos Monstros.
Godzilla abriu seus olhos, destruindo milhares de cidades que haviam sido erguidas sobre suas pálpebras durante milhares de anos, e visualizou o turbilhão galáctico de astros sombrios que havia feito da degustação de sua carne sua principal missão.
Ele moveu sonolentamente o braço na direção da fera encrustada em seu ombro, a que havia acabado de despertá-lo, no processo deslocando placas tectônicas inteiras de lugar, causando meia dúzia de cataclismas que dizimaram de vez toda a vida animal que havia proliferado em suas escamas. As garras arrancaram a besta de sua carne e a esmagaram sem qualquer esforço, restando dela apenas uma massa irreconhecível de carne presa entre os dedos de um deus da destruição.
Suas costas se acenderam numa tonalidade alaranjada vívida, incontáveis quilômetros de florestas ardendo em chamas assim que seu coração nuclear se fez ativo novamente. Dentro de si, através de bilhões de fusões nucleares, a energia necessária para sua primeira rajada atômica em éons foi gerada.
A galáxia inteira se acendeu em azul. Um brilho tão forte e poderoso que criaturas que haviam vivido na escuridão durante todas as suas existências se viram pela primeira vez e se abominaram. Godzilla abriu sua boca e houve luz.
por Kabezadegelo
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