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DEPOSTATE



DEPOSTATE


O sol sequer havia despontado no firmamento e eu já sabia que nada de bom poderia vir daquele dia ou de qualquer outro em diante. Tinha um pressentimento que não me abandonava sob nenhuma circunstância. Não, era mais do que isso. Era uma sensação, uma espécie de agouro e dos piores que poderia existir.
Os segundos se arrastavam à medida que contemplava o escuro de meu quarto acompanhado apenas daquela angústia aparentemente sem sentido e dos móveis que pouco a pouco pareciam ganhar vida no aglomerado de sombras que me envolvia. Sentia frio e embora somente uma fina manta de algodão me cobrisse o corpo, deixando expostos meus pés enrijecidos, não era capaz de unir coragem o suficiente para me levantar da cama.
Horas pareciam ter se passado, meu cérebro permanecia paralisado e a escassez de luz por trás das persianas não se alterava. Eu podia sentir o suor grudado em minha pele, aquela sensação de refrescância repugnante de quem acaba de se banhar em fluidos. Àquela altura meus dentes trincavam-se sem que eu sequer percebesse e meu corpo estirado se contraía ao mesmo tempo em que eu era espremido para fora de mim mesmo.
Sentado, diante da agonia de meu invólucro carnal, mal me dei conta de que não estava mais sozinho. Foi então que a vi. Ou melhor, senti. Do outro lado do quarto, encarando-me com enormes olhos vermelhos de lagartos. Seu enorme bico prateado cintilava contra a penumbra e eu quase podia ouvi-los tinindo, ainda que ela certamente não os estivesse movimentando. Havia algo de letal nele, embora não de uma forma literal. A criatura tinha a forma de uma gigantesca gralha negra. Eu não notei antes, mas ela sorria para mim. Não um sorriso qualquer, mas um sorriso que englobava toda sua cara corvina e absolutamente macabra.
É a última coisa de que me lembro. Tal encontro não deve ter durado mais do que alguns minutos e, no entanto, pareceu-me tão mais longo. Tenho cada detalhe cravado em minha memória. Posso fechar os olhos e é como se a imagem daquela criatura medonha houvesse sido tatuada no verso de minhas pálpebras. Já fiz de tudo para tentar esquecer, da aguardente ao ópio: nada nutriu efeito.
Sua presença também não me abandona e a sensação que ela me transmitia naquela fatídica noite permanece a mesma. Às vezes, sinto que fui escolhido, mas não tenho conhecimento do que quer que me tenha sido atribuído. Tal pensamento pesa em meus ombros e um sentimento de encolhimento assola meu espírito de uma maneira insuportável. Tenho respirado com dificuldade também e o suor entre meus dedos é frio e pegajoso e constante. Sinto-me impregnado por uma força jamais vista antes, às vezes penso que fui enterrado vivo e tudo que vivi desde então não passa de um delírio.
Fecho os olhos e posso afirmar que não há qualquer diferença de tê-los abertos, mesmo que o sol no horizonte brilhe de forma ofuscante para aqueles que me rodeiam. Por que o medo? Uma voz surge do fundo de meu ser. Ela sempre esteve aqui. Sinceramente não sei dizer se essa voz é minha ou não. Mas posso dizer que ela é férrea e estridente e que corre por minhas veias, tão forte que quase posso cheirá-la.
Ela está crescendo, eu sei. Ela se alastra. E dói.
Ela sempre esteve aqui. Apenas esperando por uma brecha, eu a deixei entrar. Uma garoa fina chove sobre mim e os meus fantasmas dançam com o vento e os meus cabelos. As ondas vêm e vão, chamando-me pelo nome. E apesar da ferocidade de seus movimentos, suas vozes são um coro suave: hipnotizam-me.
Eu estou febril, estou perdendo o controle dos movimentos de meus orbes, sinto o gosto de sal em minha língua: uma amostra do que me espera. Ou seriam lágrimas? Meus pés sangram ao se arrastarem sobre pedras lascadas. A chuva cai finalmente e fatia-me a carne como lâminas transparentes. Nada me prende. Só mais um passo, ela diz. Mas por que a pressa? Eu já estou aqui e não há caminho de volta. Sua presença me agoniza. Já não sei se meus passos me levam em direção aos braços dela ou na direção oposta. E também não sei se há diferença entre ambos os caminhos.
No entanto, eu caio. Estive caindo todo esse tempo e simplesmente não há fim. Não, não há diferença nenhuma. Ela sempre estará aqui, de uma forma ou de outra. Nada funciona. Nada me prende. As sombras me englobam e a noite entoa sua canção fúnebre. Meu sorriso tiniu prateado como a lua, meus olhos sangraram dilatados e reptilianos.
Sou uma âncora perdida nas profundezas. As águas me engolem, sou trevas! Minhas asas me envolvem e nos decompomos  entre as correntezas, ela me preenche e nos liquefazemos. Eu estou aqui. Ela está em todos os lugares — nós estamos. Apenas esperando...



Por: ZARETSKY.
Ilustração por: John Rea Neill.

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