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A Rainha da Noite


Num sobrado, no bairro de Apipucos, vivia Hilda, que mantém seu silêncio como boa vizinha, até demais. A vida no Sobrado Southeil era quase inexistente. A única coisa viva que passava por alí alem de traças era a própria dona. Muitos anos de existência, da casa mais do que de Hilda. Alguns boatos corriam no bairro de que a adega da casa era rica em vinhos franceses envelhecidos, que vieram com a compra do casarão, do residente anterior. O sotão ia ser transformado numa segunda sala de estar, para fumantes, mas hoje não passa de uma sala com móveis cobertos de lençóis estranhamente perfeitos, para uma casa com a quantidade de traças que havia nos outros três andares. O térreo, primeiro andar, e subsolo, onde ficava a adega.
As vezes as pessoas do bairro batem na porta só pra checar se a mulher estava viva. Uma jovem viúva, que preocupava uma vizinhança tão fofoqueira quanto um salão de beleza da Várzea. Genoveva, sua antiga melhor amiga, aparece durante a noite – somente durante a noite – para perguntar como passava a pobre viúva. Veva, como Hilda chamava sua amiga, as vezes deixava alguma comida feita pelos seus criados para sua amiga. O sentimento de alteridade sobre Hilda com os vizinhos era tão vívido porque os costumes da vida dessa mulher, mudaram muito ao longo dos anos.
Dez anos atrás, seu marido foi assassinado em sua própria casa. O sobrado era antes cercado de esculturas caras, ostentando a fortuna que possuia o marido de Hilda. A causa do assassinato foi puramente monetária, quando Hilda chegou de viagem, a casa estava quase totalmente vazia da decorações de cobre, prata e ouro. Meio brasileiro, meio britânico, possuia terras na zona oeste da cidade, e um grande percentual na cidade de Camaragibe. Esse marido afortunado nunca contou a sua esposa como ganhou tanto a vida, tanto dinheiro para gastar e gastava em gastronomia, luxúria e objetos de valor que escondessem a luxúria de Hilda. Ela nunca descobriu que o marido, depois de casados, fodia todas as mulheres da vizinhança. “Todos deveriam experimentar”, constava no diário de Genoveva.
No sotão estava a sombra do corpo do homem da vida de Hilda, que ela genuinamente amava. À luz de velas, no último andar da casa, ela queimou algumas teias de aranha para conseguir chegar nas cinzas do seu amado marido.
Era um privilégio para ela poder ter sido casada com um homem que ama, pois as outras mulheres da sua família se casaram para herdar as fortunas de cada homem – como num romance de Austen. Hilda não conseguiu nem se despedir.
A falta de seu grande amor, principalmente sem um adeus, deixou Hilda nas mais escuras sombras de seu vago sobrado. Antes era possível ouvir árias de soprano coloratura por parte do bairro, que projetavam-se pelas janelas do sobrado. Hilda era uma grande intérprete clássica, mas parou de cantar, desde que o seu marido faleceu. Parou de cantar e parou de aparecer à luz do dia, ganhando o apelido de “Rainha da Noite”. Uma irônia ao papel de ópera que já fez diversas vezes, e viajava pelo Brasil interpretando a personagem. Na verdade, esse era o papel que ela estava representando quando houve o assassinato. Em pleno Teatro Amazonas, Hilda sentiu uma pontada no coração logo que atingiu a nota mais aguda da ária, enquanto amaldiçocava “Pamina”. Um terrível mal pressentimento.
Todos os dias, Hilda, vivendo sob o espólio de seu esposo, toma banho às quatro e meia da manhã, esperando o sol nascer, no velho sotão empoirado que deixava entrar um feixe de luz por uma pequena janela no alto da parede.
- Anásio? – dizia Hilda, na esperança de seu homem ouvir
E lá ficava a mulher: despida, molhada, dentro de um quarto imundo até que o sol se pusesse, e ela deixasse de ver a luz do sol no quarto.
            Genoveva passou no Sobrado Southeil, por volta das oito da noite, e bateu na porta. Hilda atende a porta:
            - Boa noite, Veva – cumprimentou em voz baixa e escura
            - Boa noite, Hilda. Você gostaria de... –
            - Que tens pra mim hoje? – prevê Hilda, ligeiramente rude
         - Bacalhau, feito agora – fala Veva, entregando a travessa, enquanto olha o interior da casa enquanto podia
            - Tu não vais me convidar para entrar e comer contigo? – Genoveva pergunta
            - Tenho que tirar as traças deste pavimento –
            - Sempre tua desculpa –
            - Não circulo pelos pavimentos inferiores. A menos que alguém venha me alimentar. Amanhã terá peru? –
            - Espirituosa. Melhor do que alguns meses atrás – ironiza Veva, sem estranhar que no dia seguinte realmente combinou de ter peru.
            - Que espírito? – Hilda olha assustada
Genoveva faz uma pausa na discussão e observa com cautela a expressão de sua amiga. Por um momento lhe ocorreu o que lhe faria ter um punho menos cerrado para Hilda. Veva desce o degrau:
            - Já vou sair, então. Mas só mais uma coisa queria lhe perguntar –
            - Hoje é dia 20 de agosto – prevê Hilda, mais uma vez
            - Ah...obrigada. Bon appetit
A porta do Sobrado Southeil se fechou atrás de Genoveva, e ela corre de volta pra casa.
            Ao fechar a porta da frente atrás de si mesma, Veva sentou-se no sofá para ler um livro de poemas do seu avô. Leu bastante. Enquanto lia as primeiras palavras da página 365, ela ouviu um barulho. Um barulho gostoso de se ouvir na verdade, que vibrava as janelas de sua casa. Veva se levanta e vai até a sacada ouvir até finalmente reparar uma semelhança com mais uma ária de Mozart, “Popoli-di-tessaglia”. Parecia mais sombria do que a melodia original, mais melancólica.
            O drama instaurou-se em Apipucos ao ouvir Hilda após um ano de luto de seu marido. O 20 de agosto que todos se esqueceram. A página 365 aberta não por acaso. O bacalhau tão europeu quanto o sotaque inglês no português de Anásio.
            Hilda cantava em pé enquanto o piano soava. Soava sem contato com as teclas. O pecado que ela cometia, modificando tanto a partitura da música era menos agonizante aos ouvidos quem não tinha noção da melodia da peça Alceste. Mas ainda penetrante e hipinotizante.
            As casas próximas que ouviram, todas as famílias delas saíram. Era possível perceber a diferença de acústica de quando Hilda, com seu longo vestido preto caminhava pelo sobrado escuro e cheio de traças. Possível ouvir de quando ela saiu dos altos saltos em que andava, passos que antes eram ecoantes, viraram baques surdos. Tão surdos quanto a queda da saia, da cinta, do busto e das mangas.
            Não foi possível ouvir, mais nada. Pausa na ária. Crianças e adultos entreolhavam-se, até a porta bater e mostrar os mais alvos seios e quadris da cidade. O corpo que levava somente a luz que dava a presença de Anásio à Hilda. E ela cai, na sarjeta de sua casa, completamente despida.
            Não demora muito. Não demora até que as traças saiam voando desesperadas de todos os aposentos do Sobrado Southeil e englobassem o corpo da mais famosa soprano coloratura do Brasil com o ventre antes tão alvo agora tão encarnado quanto as chamas do inferno dantiano.
            Uma figura mascarada é desdobrada a partir das traças:
            - Ela nunca soube que eu era luz e sombra, céu e inferno, noite e dia, vida e principalmente morte. Uma vida esvaiu-se por amor, outra vida que foi tirada por contrato. Fui as trevas por um ano, e por fim serei luz no futuro, que vejo uma vida semelhante que precisa de mim, e que me quer tanto quanto Hilda. Adeus, Hilda. Adeus, Noália. – sussurrou
            As famílias ainda só viam traças em volta de Hilda, que fizeram-na sumir na plena meia noite para 21 de agosto. Vago estava mais uma vez o velho Sobrado Southeil.
           


George Altair

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