Seus
passos percorriam o chão lameado com folhas e galhos, numa
velocidade desesperada e sem direção. Os caminhos sempre pareciam
diferentes, mesmo quando ela tentava voltar, não havendo trilha
certa e a floresta era muito densa para ver algo além de alguns
metros, sendo que as árvores eram tão altas que cobriam os céus.
Não havia luz ali, pelo menos não a do sol. Tudo parecia ter uma
cor azulada, mas ela não sabia se era algo em sua visão ou se era
do lugar. Aquilo não fazia sentido algum, tanto a luz, quanto a
floresta, ainda mais ela estar ali. Como chegou àquele lugar? Jurava
que estava indo a pé ao supermercado, onde ficava a um quarteirão
de sua casa no subúrbio. Mas, de repente, parara ali e não fazia
ideia do motivo. Devia ser um sonho, mas já tentara acordar,
beliscando-se, dando alguns tapas em seu rosto e até mesmo se
cortara ao passar por uns galhos, porém não acordou. Assim, não
havia muito o que fazer, a não ser tentar escapar dali. Corria já
há algum bom tempo e não tinha certeza de quanto tempo passou.
Talvez 3 horas? Mas tinha a sensação de que foram alguns minutos.
Alguns
estranhos sons eram possíveis de ouvir, só que a moça não
conseguia distinguir, podendo ser algum animal estranho ou o vento
balançando os galhos. Pelo menos, era o que ela esperava que fosse.
E por mais que não encontrasse um animal sequer, tinha a sensação
de que algo a observava. Sempre olhava para cima, para os lados e
nada. Nem mesmo um pequeno pássaro. Em um momento, a moça parou de
correr e se encosta numa enorme árvore de tronco grosso. Seu peito
arfava bastante e ela olhava para o chão, observando a lama com mais
atenção. Ao se abaixar para tocar, sentiu um enorme frio percorrer
da ponta dos dedos até a espinha, percebendo então que aquilo não
era lama. Não fazia ideia do que seria e imediatamente ela limpou os
dedos na roupa, levantando-se, em seguida, para que pudesse sentar
num tronco caído que havia ao lado da árvore. Era velho e com
musgo, todavia, era melhor do que sentar naquele estranho chão. Sua
respiração neste momento voltou a ser estável, podendo pensar com
mais calma em sua situação. Devia fazer algumas horas desde que
estava ali, ainda não entendendo como chegou. Presa em seus
devaneios, a moça olha para o alto, atenta a copa das árvores que
impediam a entrada da luz do sol. Mas ainda havia aquela estranha
iluminação azulada, algo que nunca antes presenciara. Como ela
podia respirar normalmente, o ar não era tóxico. Dessa vez, sua
atenção voltara para o chão viscoso. Não era num só lugar,
parecia se estender por toda a área. Ponderava se era algum tipo de
lama diferente ou um estranho fluído de um animal qualquer. Torcia
para que fosse a primeira opção.
Enquanto
ainda estava mergulhada em pensamentos, um estranho barulho elevou-se
atrás dela, fazendo com que saltasse do tronco assutada. Foi um
barulho grave e que arranhou seus ouvidos, mas não havia nada ali ou
escondido atrás da grande árvore. Sua pele formigava e ela começa
a dar passos cautelosos para trás, tentando não fazer nenhum
barulho e olhando ao seu redor. Nenhum som além dos galhos que
sacudiam acima de sua cabeça, com um vento fraco e relaxado. Não
havendo sinal de ninguém, virara devagar para voltar a andar,
temendo ficar ali, caso algo pior ocorresse além de um estranho som.
Porém, mais uma vez o som surgiu de suas costas, dessa vez emitindo
palavras.
-
Você, humana, o que fazes aqui?!
Instintivamente,
ela se virou assustada a procura de algo, mas não via nada além do
que já vira. O tronco no chão, a árvore que se encostara e… A
árvore, ela parecia diferente agora. Seu tronco se tornou um pouco
mais sinuoso e sua madeira estava descascando. Movida pela
curiosidade, ela caminha calmamente até a árvore, a fim de
observá-la melhor. Realmente, estava mais diferente. A madeira
estava bem desgastada. Sem pensar, ela passa os dedos na madeira,
sentindo o relevo com calma e agrado, até que o tronco começa a
tremer e, onde havia o desgaste, foi aberto um estranho buraco,
“nascendo” vários pedacinhos de madeira. E ela pôde confirmar o
que havia feito o som. Foi a árvore. No instante que o buraco abriu,
ela gritou com a garganta seca e ouviu o som emitido nitidamente.
-
Parece que está curiosa comigo, não?
Inacreditavelmente,
o buraco tinha o formato de boca e os pedacinhos de madeira eram o
que parecia ser dentes. Por conta do susto, ela caiu de costas no
chão viscoso, só que agora não se importava onde estava deitada,
pois havia algo mais louco a sua frente.
-
V-Você falou? Isso é mentira, né?
-
Estúpida como os outros. - sua voz soava desdenhosa e, junto ao
grave e eco criado pelo interior de sua madeira, era muito mais
sinistro do que a moça começava a pensar. - Por que sentou-se ali?
Você não respeita seus próprios defuntos?
A voz se tornava cada vez mais agressiva e ríspida. Os “lábios”
se moviam e rangiam com movimentos estranhos e, mesmo sem uma face,
sua seriedade era notável e parecia bastante ameaçador. Passaram
poucos segundos até ela ter coragem em se levantar e tentar
acreditar o que via.
-
Desculpe, eu não quis ofender a você, só estava cansada e…
-
Cale-se, humana. Você não ofendeu só a mim. Não me importo se
estava cansada ou coisa parecida, apenas suma daqui!
-
Não só te ofendi?
Neste
exato momento, outros sons muito parecidos com o que a árvore emitiu
antes surgiram por todos os lados. Árvores de tronco fino, árvores
novas, velhas, quantas fosse possível imaginar agora murmuravam
diretamente para a mulher. A pobre moça girava no mesmo lugar, com
os olhos arregalados e a boca entreaberta. Os lábios secos estavam
rachados e por não se alimentar há um bom tempo, seu rosto
empalidecera mais ainda pelo medo. O horror estampado em seu rosto
até parece ter surgido com o despertar daqueles seres que
resmungavam, xingavam e urravam.
-
Essa imbecil precisa sair daqui!
-
Você não é bem-vinda. Seria melhor se morresse e servisse de
refeição aos vermes.
Eram
poucas as palavras que conseguia entender, ou as que preferia ter
entendido. Seu lábio tremia quase sem cor. Seus olhos não eram
capazes de piscar. Sua voz parecia ter sido engolida por aqueles que
estavam a sua frente. Sua visão começava a ficar um pouco turva e o
azul ao seu redor parecia escurecer um pouco mais. Não sabia o que
fazer, muito menos o que falar. Queria correr, mas aquilo tudo
parecia devorar suas energias. Ela estava cercada de vozes e
burburinhos, até reunir um pouco de força para falar.
-
Como eu saio daqui?
Dito
aquilo, o silêncio abraçou todo o espaço, de maneira tão
repentina e profunda que parecia até mais insuportável do que a
barulheira de antes.
-
Podemos lhe ajudar – disse uma das árvores, quebrando o incômodo
silêncio.
-
Ver… da… de? - sua voz rastejava, mas pela esperança criada,
começava a ter mais vontade em falar.
-
Você deve se jogar no fosso.
Isso
que foi dito. A displicência foi o que a causou confusão. A
esperança que começava a brilhar agora era mais uma vez engolida
pelas sombras.
-
Que fosso?
-
Caminhe à sua esquerda, em alguns passos você o achará ao lado de
uma gigante pedra oval.
Não
conseguia perceber se aquilo era verdade ou não. Parecia uma tortura
psicológica. Apesar da adrenalina e medo que antes sentia, em um
segundo tudo mudou. Seu conceito do que era medo era falso, não se
assemelhava àquilo. O verdadeiro desespero nasceu em seu peito,
vindo daquelas vozes. Nunca jamais pensaria que sentiria medo de uma
árvore. Mas naquela floresta de fúria e desdém, isso era possível.
Desse modo, ela se vira na direção indicada e começa a se mover
lentamente, sendo o máximo que conseguia. O canto de seus olhos
observava cada uma delas. Elas pareciam respirar, ou era só o vento
adentrando em suas bocas? Não podia saber.
O
que poderia ser uma caminhada de segundos, parece ter sido horas. E
em momento algum, elas falaram, fazendo com que a moça começasse a
questionar se não havia enlouquecido e imaginado tudo aquilo por
conta daquele ar. Mas não arriscara em falar nem olhar diretamente
para elas. Então, finalmente chegou. Era um fosso extremamente largo
e escuro, com várias raízes preenchendo sua lateral e indo até o
fundo, perdendo-se de vista. Estava encarando o buraco, até quase
explodir em lágrimas no momento em que uma das árvores falou.
-
Pule.
Desta
vez, ela tomou coragem de olhar ao seu redor. Todas as árvores que
enxergava moviam suas bocas bem devagar, fazendo rangidos baixos e
longos. Algumas pareciam contorcer-se em ódio, outras, sorriam.
Talvez fosse apenas o medo que domou seus olhos. Mais uma vez, ela
encara o fosso.
-
Mas… ele tem… um fim. I… rei morrer.
-
Achávamos que gostaria de ir para casa, humana.
-
Talvez se morrer, seja melhor para um ser imundo como você.
-
Você apenas saberá se fizer. Jogue-se e descubra a verdade.
Aquilo
era totalmente irracional e jamais faria algo do tipo. Ao menos, era
isso que ela pensaria em uma situação normal. Em qualquer momento,
parecia que ela nunca mais falaria ou poderia se mover. Aos poucos,
algumas lembranças suas viam-lhe a mente. Espancamentos pelo seu ex;
os abusos feitos pelo tio; o acidente de carro que sofrera quando
criança. Se estava prestes a morrer, a história que contam sobre
ver toda a sua vida ou as coisas boas dela era pura mentira. Se
aquilo fosse realmente um sonho, ou se ela estivesse de fato num
lugar que as pessoas desconhecessem, ela preferia até que a morte a
esperasse no final. Mas ainda queria ver seu irmão pequeno mais uma
vez. Ir a um restaurante novamente. Desejava agora lembrar como é
sorrir. Logo, sem hesitar mais, ela abandona o peso de seu corpo,
despencando contra a escuridão do fosso, indo de encontro a sua
verdade.
Kalazar Kramer
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