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Memórias


     Primeiramente preciso lhe contar que minha esposa sempre foi uma pessoa de bom coração, e por esse motivo que torno a me questionar "por que ela?" Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?

     Minha esposa sempre foi uma exímia escritora. Meses atrás, ela chegou em casa radiante; relatou-me ter encontrado uma caneta na rua; parecia extremamente empolgada com tal fato, no qual, para mim, não fazia sentido algum tanto estardalhaço por uma simples caneta. Interpretei simplesmente que minha amada estava tendo um bom dia.

     No dia seguinte, ela mal levantou da cama e já estava com a caneta em mãos. Começou a escrever freneticamente; contou-me que estava inspirada. Passou o dia escrevendo, e assim foram as primeiras semanas, as quais eu a via parando apenas para comer, ir ao banheiro e dormir. Certo dia, pedi para ler parte daquilo que meu amor estava escrevendo, e, ao me aproximar do papel, ela puxou para longe de mim. Murmurou (sem tirar os olhos do papel) que eu poderia ler quando estivesse pronto. A partir de então ela não me dirigiu a palavra nos meses seguintes. Na verdade, aquelas foram as últimas palavras que ouvi saírem de sua boca.

     As pilhas de papel iam se acumulando dia após dia. Nesse ponto, minha esposa já não comia nem dormia. Certo dia, senti um cheiro amargo ao passar em frente à porta do escritório onde ela se punha a escrever, e, com horror, constatei que eram seus próprios excrementos. Ela não levantava mais sequer para ir ao banheiro! Eu precisava fazer algo a respeito, mas por algum motivo não conseguia. Cada vez que eu ia até à porta da casa para sair e buscar ajuda, esquecia o que estava a fazer e voltava para dentro de casa; eu não encontrava mais a chave do carro, mesmo tendo certeza que havia a deixado na mesa da cozinha; eu não lembrava mais o número da emergência nem sabia como pedir socorro a alguém para ajudar a minha esposa. Às vezes, eu não reconhecia sequer a minha casa e me perguntava onde que eu estava.

     Finalmente, decidi enfrentar aquilo que estava acontecendo; não podia deixar o amor da minha vida se matando sem comer ou dormir. Fui até o escritório; a porta estava, pela primeira vez, fechada. Não bati, apenas girei a maçaneta e entrei. Fui chamá-la pelo nome enquanto abria a porta, e, num último segundo desesperador, percebi que não lembrava o seu nome. O nome da mulher com quem me casei há... não consigo lembrar há quanto tempo.

     O quarto está vazio. Subitamente dou um pulo assustado com um homem idoso que vejo atrás de um vidro na parede à minha direita, até que me aproximo e percebo, pasmo, que o vidro é um espelho. Desvio o olhar e sigo para a escrivaninha que está repleta de papéis, entretanto, uma imensa pilha em especial se destaca. No topo da pilha, com uma caprichosa caligrafia, porém em letras apagadas, como se tivesse sido escrito séculos atrás, está escrito "MEMÓRIAS". Passei a mão folheando algumas páginas à procura dos escritos, porém elas estavam todas em branco. Passei as mão sobre os papéis na mesa e todos estavam em branco.

     Um forte arrepio percorre o meu corpo quando sinto que alguém está me observando. Viro para trás a tempo de ser golpeado com uma cadeira. Me recupero e consigo ver a criatura medonha e de aparência ensandecida que me atacou, rosnando para mim, com os olhos quase saltando das órbitas; um ser desfigurado. Sua pele parecia escamas de um peixe morto há semanas de tão seca, rachada e descascada que se encontrava. A coisa horrenda salta sobre mim, me atacando com um canivete. Apenas após ela enfiar aquilo no meu peito que pude olhar e perceber que não era um canivete... era uma caneta... uma caneta bem afiada.

     A criatura fazia sons que sequer pareciam humanos. Arranquei a caneta do peito e uma loucura se abateu sobre mim. Pulei sobre a coisa horrível à minha frente e enfiei a caneta através do seu olho. Ela ficou imóvel no chão. Não consegui soltar a caneta, então a puxei de volta e fiquei a segurando, paralisado. Naquele corpo estendido no chão, havia uma aliança em sua mão esquerda, similar à que estava na minha própria mão. Porém, naquele momento, não fui capaz de fazer tal conexão. Eu não conseguia entender o que havia acabado de acontecer.

     Um sussurro despertou-me do topor: uma voz... que não parecia com nenhum idioma da terra; não parecia uma voz humana nem o som de animal algum que habita esse planeta. Horrorizado, me dei conta de que a voz vinha da caneta em minha mão. Nesse momento, senti uma necessidade súbita de escrever o que eu estava pensando. Era um sentimento similar a um ápice de inspiração, porém de uma maneira mórbida, pois sentia que, se não escrevesse, meus pensamentos iam se perder para sempre.

     Com a mesma caneta suja de sangue na minha mão, comecei a escrever esse relato, pois acredito que, se não colocar minhas palavras no papel, não conseguirei lembrar novamente, e ninguém nunca saberá o que aconteceu aqui.

     Estou chegando ao final das minhas forças, olhei para o chão e vi uma poça de sangue; coloquei a mão no meu peito e percebi de onde todo aquele sangue saía. Não consigo lembrar o porquê...

     As letras... elas estão se apagando... eu não consigo entender... 



Eu não consigo lembrar meu nome




Por: Chicó

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