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Evidência número 01 do caso 1011


Primeira Delegacia de Polícia da Boa Vista.

Caso: 1011.

Evidência N: 01.

Policial encarregado: Delegado João Pátimos.

Descrição da evidência: Trata-se de um livro (mais especificamente, um diário) de capa dura de couro negro, medidas 10x20 cm. Possui arranhões tanto na capa quanto no verso, indicando prolongado uso sob circunstâncias não-ideais. No interior, a maioria das páginas estão ilegíveis ou arrancadas e algumas possuem desenhos. Com a exceção de uma, todas as páginas legíveis contém material escrito usando uma série de signos e símbolos que constituem uma espécie de código, parcialmente decifrável por meio do método Faustus (checar relatório anexado número 47). O código parece variar em complexidade dependendo da página, e a maior parte do livro ainda não foi decifrada.

Obtenção da evidência: O diário foi enviado para a delegacia pelo correio em um envelope selado a cerca de três (3) semanas atrás e inicialmente foi ignorado, tendo sendo visto como algum tipo de trote. O livro foi mantido no arquivo de itens não-classificados até que o Delegado João Pátimos, cerca de dez (10) dias atrás, notou que os simbolos nas cenas do crime do assassino em série apelidado de “Primeiro dos Muitos” eram idênticos ao símbolo contido em todas as páginas codificadas do livro (omitido aqui, o símbolo pode ser achado no supracitado anexo 47).

Progressão do caso: O delegado Pátimos pessoalmente se encarregou de supervisionar o time de criptógrafos lidando com o caso e da investigação como um todo. Até o presente momento, duas (2) páginas foram parcialmente decodificadas. Tentativas adicionais de rastrear o ponto de origem do diário não tiveram sucesso. As páginas decodificadas (junto a única página escrita em Português). serão reproduzidas abaixo, com ocasional comentário adicional pela minha parte na relevância delas para com o desenvolvimento do caso:

- Página em Português: “11/11/2017: Eu decidi começar um diário. Dizem que é bom para a saúde mental. Também dizem que é bom começar com o seu nome, mas não vejo por quê começar com o meu. Tão comum, como tantos outros. Dado a mim por comitê pelo sistema, não por uma pessoa, após ter sido encontrado abandonado na beira da estrada por um caminhoneiro. Dizem que foi um milagre ele ter parado, por quê não teria durado muito tempo por lá. Não sei bem se concordo com a palavra “milagre”, vendo o tempo que passei fome entre uma cidade e outra, de uma família adotiva a outra, soprado de um canto para o outro como uma folha ao vento. Pertencendo a lugar nenhum.
Não sei bem se mereço um nome, ou uma definição. Não sei bem de muita coisa, muito menos o que mereço. Só me lembro de uma memória de pertencimento: Uma voz no escuro, cantando para mim até eu dormir. Não lembro o que ela cantava.
Não sei se lembro ou imagino isso, mas é uma boa memória.”

Adendo n.1: As páginas seguintes foram arrancadas ou rabiscadas. Todas as páginas legíveis posteriores estão escritas no supracitado código. A página em Português é a única que parece ter sido escrita com uma caneta estereográfica comum, enquanto as outras parecem ter utilizado algum tipo não identificado e mais grosso de tinta, lembrando o material expelido por algumas espécies de cefalópodes.

- Página Decodificada N.1: “15/04/2018: É o meu aniversário. Eu estou aqui nessa casa ainda, sozinho. Nenhuma visita, nenhuma ligação. Único contato humano que eu tive hoje (ou nos últimos três meses, na verdade) foi o síndico pedindo o dinheiro do mês. Pensei em comprar alguns doces, mas não tinha como. Estou acostumado. Decidi me dar esse aniversário como um presente de reflexão e pensamento, de onde eu vim, onde eu estou e para onde eu vou. Clichê, eu imagino. É só que eu consegui pensar enquanto estava de pé, olhando o espelho do banheiro após ter jogado os comprimidos pelo ralo, atendo os olhos as imperfeições no reflexo, nas manchas no vidro, no cansaço dos meus olhos. Já passou da hora de auto-ajuda, já passou a hora de pensar sobre a minha situação: chegou o momento de tomar uma atitude. Afinal, dizem que toda hora que se passa causa um ferimento na sua alma, e a última mata. Eu já sofri horas demais, ferimentos demais. Decidi levar a frase ao pé da letra e cá estou vendo o sangue escorrendo pela pia, circulando no ralo em um redemoinho, girando e girando, sem propósito. Eu poderia parar, poderia pegar um telefone e chamar ambulância, mas não sei se meus dedos funcionam considerando a profundidade do ferimento. Bom, funcionam por quê eu estou escrevendo, mas não deveriam estar funcionando. Meus olhos escurecem. Está errado.
Está tudo errado.”

Adendo n.2: As subsequentes dez (10) páginas são ilegíveis devido a manchas cada vez maiores de sangue e algumas gotas secas do que parecem ser lágrimas. A escrita se torna parcialmente legível novamente na décima primeira página seguinte a reprodução anterior. As manchas de sangue encontradas no livro indicam uma perda de sangue extrema, provavelmente fatal sem ajuda médica. Tentativas de identificar o sangue foram infrutíferas.

- Página Decodificada N.2: “Meus olhos não deveriam estar abertos, mas estão. Mais abertos do que jamais estiveram. Tão escancarados quanto os ferimentos nos meus pulsos que ainda pulsam, sangrando, chorando escarlate. Eu vejo mais do que deveria. Lembro mais do que deveria. Sei mais do que deveria.
A escuridão me engoliu, lambendo minha alma e me chocando contra os dentes pálidos. Me dissolveu, me digeriu, me excretou e começou o processo de novo. Não havia visão, não havia tato, não havia cheiro, mas havia som. Agudo e singelo, como um arranhão no vidro. Eu escutei as vibrações sem nome no abismo, e ouvi. Ouvi memória, há muito esquecida. A memória de uma voz na escuridão, cantando para mim. Mas dessa vez eu lembro o que ela cantou. Eu lembro. Cantou sobre beleza e horror, sobre carne e pecado, sobre os olhos no escuro, aguardando há séculos.
Eu sei quem eu sou. Sei meu propósito.
E eu sei que não estou só. Não sou filho único.
Incontáveis irmãos, aguardando no escuro.
Não sou o único.
Mas fui o Primeiro.”

Adendo n3: As últimas duas linhas são repetidas periodicamente nas páginas posteriores do livro, levando a alcunha de “Primeiro dos Muitos” ou “Primeiro” sendo aplicada a. O primeiro cadáver, o corpo da vítima Armênio Fonseca (dado como desaparecido anteriormente), foi encontrado em 20/04/2018, cinco dias após a data mencionada na primeira página decodificada. O corpo foi encontrado na beira da BR 101 com os dois olhos removidos e um caso extremo de rigor mortis deixando a vítima com um sorriso forçado na expressão, além das duas orelhas perfuradas por alfinetes com profundidade o suficiente para alcançar o cérebro. Os membros do corpo foram retorcidos em variadas direções e um símbolo (ainda não decifrado) inscrito na testa da vítima. Este símbolo é agora conhecido como "marca do Primeiro". Esse mesmo modus operandi se repetiu com onze (11) corpos encontrados desde então, o último corpo tendo sido achado cinco (5) dias atrás. As vítimas eram de variadas classes, etnias e faixas etárias. Não fomos ainda capazes de identificar um padrão nas vítimas escolhidas. 

Adendo final: O Delegado João Pátimos foi afastado do caso após uma tentativa de suicídio. Considerando este e outros incidentes relacionados ao bem-estar mental dos funcionários, uma política de acesso limitado ao diário do Primeiro foi estabelecida. Queixas de pesadelos indistintos e vozes na cabeça são até o presente momento consideradas fruto do stress do trabalho e nada mais. Cautela é recomendada durante a leitura.

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Ábigor.

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