Inspirado pela música homônima de Kenny Hotz
ATO I
O homem dos cabelos rasos, assim chamado porque seu couro cabeludo havia passado a se assemelhar a uma piscina (não está vazia, mas dá pra ver o fundo), temia profundamente seu falecimento desde o dia em que percebera que seus cachos vagarosamente caiam e não tornavam a se erguer. Esse seu temor é indubitavelmente fruto da realização de seu envelhecimento, da qual a maioria é afortunada o bastante para alcançar gradativamente, de modo que a dor só aparece quando o indivíduo realmente percebe, e dali pra frente não há muito mais tempo pra senti-la de qualquer maneira.
O homem dos cabelos rasos, sendo o ponto fora da reta que era, não teve essa sorte. Em seu caso, a realização surrupiou sua felicidade num fragmento de um instante tão breve que outra pessoa, na mesma situação, poderia ter vindo a achar que o momento nem sequer realmente existiu e foi apenas um produto de sua imaginação. A parcela ignorável de um segundo pelo qual sua mente, em um surto enlouquecido, gerado por um fio solto na renda emaranhada da probabilidade, disparou a 10.000 cilindradas e de uma só vez teve todas as realizações capazes de serem tidas por todos os seres do universo conhecido sobre as consequências de envelhecer. Seu corpo, sem a liderança de seu cérebro, e num espasmo elástico, como uma tartaruga que de uma vez só retrai todos os seus membros de volta para seu casco, se atirou ao chão. A dor foi tanta e tão perfeitamente torturante que o mesmo, num insignificante indício de lucidez, indagou se talvez não seria melhor ter morrido naquele mesmo instante, já tendo, em sua mente, experimentado tudo que a vida havia de lhe trazer e o quanto não estava ansioso para fazê-lo novamente.
As consequências dessa brutal epifania não se limitaram ao já citado bater de asas de um beija-flor, e viriam a se realizar a cada princípio de ideia que tivesse. Entre as 300 bilhões de estrelas que se situam em nosso universo, das quais orbitam 3 trilhões de planetas, uma infinidade de luas e uma infinidade ainda maior de astros, sem levar em conta a outra infinidade de dimensões paralelas, que por si só contam com seu próprio infinito de unidades matemáticas, nenhum outro ser com semblante de consciência poderia dizer que teve toda sua percepção de si tão abalada quanto o homem dos cabelos rasos, tudo em menos tempo do que leva a natureza para tomar seu rumo fazendo a luz percorrer o interior de uma lente.
Enquanto levantava, pensou no quanto a anatomia humana dependia da coluna cervical, um conjunto de ossos e nervos com um prazo de validade que reduzia a cada momento em que ele sentava errado numa cadeira ou dormia num colchão velho. Cada passo dado sem usar os calcanhares, cada minuto dentro de um carro sem os ombros relaxados, cada momento em que não se agachava para apanhar suas chaves.
Enquanto passava suas mãos sobre o inchaço em sua nuca pensou nas possíveis ramificações que o impacto teria na sua massa cinzenta, e de que mil maneiras aquilo lhe afetaria negativamente no futuro, quando as células nervosas que morreram dolorosamente no baque lhe seriam piamente necessárias. Num flash, visualizou todas as vezes que esqueceria o nome de alguém ou deixaria algo cair de sua mão involuntariamente antes de suas palavras se arrastarem para criar uma desculpa.
Enquanto outros vinham ao seu apoio, ele, no mesmo tempo que levou para iniciar todo seu apocalipse pessoal, absorveu a essência da juventude perene que condenava todos aqueles seres de boa intenção e o cálculo exponencial de quantas vezes mais precisaria de ajuda nos anos que estavam por vir. Tristemente, beijou um adeus adiantado a sua independência.
Enquanto olhava para suas mãos pensava na composição química infimamente complexa e incompreensivelmente delicada de seu corpo, uma fábrica biológica que continuamente secreta material orgânico em sua jornada inevitável para a exaustão, fadada a produzir com cada vez menos eficiência até que um dia simplesmente não haja nada na linha de produção a não ser migalhas.
Independentemente do quão horripilantes esses pensamentos lhe poderiam ser, nenhum deles se comparou àquele que o fez o recluso hipocondríaco que ele viria a se tornar: o de simplesmente deixar de ser. Através de matemática básica, o homem dos cabelos rasos concluiu a gravidade de sua própria inevitável conclusão, porque se afinal, existir é alguma coisa, e não existir é nada, então qualquer coisa é automaticamente melhor do que sua não existência, apenas pelo fato de ser algo, e não nada.
Mas não se tratava apenas de não ter nada, como também não ser capaz de sequer chegar a realização de que nada mais resta, por nada mais lhe restar. Um único grão de cinzas, o quão patético possa ser, ainda tem esperança de um dia chegar a um ponto em que possa compreender sua própria existência e sua vida faça sentido, um grão de nada não possui nem sequer esse pelo menos.
Do que resta então para alguém tão focado em ganhar de um inimigo implacável, incomunicável, inabalável, inevitável e incompreensível se não passar o resto de seus dias vivendo sua vida como um jogo de soma zero, em que cada átomo e célula salvo é um ponto no placar contra o infinito.
É uma obviedade que viver de tal maneira, por mais que a tal tenha, em seu princípio mais enraizado, o intuito de economizar, tem os seus custos. Assim como o tolo que não preserva sua semente por preguiça, apenas para pagar as consequências com o resto de sua vida e a responsabilidade de ter um filho, o homem dos cabelos rasos pagava em vida o que ele tentava poupar da mesma moeda. Seus dias eram feitos de absoluto nada, contemplando, de olhos vendados, o mais íntimo vazio, para que assim não desgastasse sua visão.
Se poupava de andar para que assim não desgastasse seus joelhos, da mesma forma que se poupava de sentir para que assim não desgastasse seu tato. Se poupava de comer, para não ter de utilizar seu suco gástrico, tão ácido como era, e na mesma moeda, se poupava de beber para não atiçar os tão complexos sistemas líquidos que regiam sua temperatura corporal. Seguindo o exemplo de seu mestre, seu corpo se adaptou as ausências e decidiu parar de agir. Sábios poderiam argumentar que o mesmo se prendeu num loop de feedback, onde a mera existência da profecia acaba por realizar a si mesma, e eles estariam definitivamente certos. Talvez por esse motivo, ou talvez por vários outros, após certo tempo, seu cérebro finalmente cedeu de pensar, para assim não exaurir os seus neurônios.
ATO II
Milhares de anos depois, no que pode ser descrito como uma faísca sendo expelida do corpo de uma pilha que há séculos se derreteu e já para a terra e os céus de onde veio havia voltado, seu cérebro emitiu um pensamento, ou talvez, uma realidade. O homem dos cabelos rasos, ou a coisa mais próxima o possível de ser denominada com tais palavras, imaginou, ou talvez criou, uma borboleta, a rainha, por falta de contestantes, de seu mundo.
Durante um período que escapa a noção do tempo, o homem dos cabelos rasos observou o voo tortuoso da borboleta, com seus altos e baixos tão imprecisamente feitos que após um infinito passaram a ser perfeitamente padronizados. O fato de que ela jamais parou, durante todo o tempo em que ele havia a admirado, o levou a se questionar se borboletas jamais dormiam, e se sim, onde que faziam sua cama.
Se para matéria existe antimatéria, então para qualquer coisa que existe, seu oposto deve inexistir. Essa outra faísca, cuja existência é tão improvável que beira a inexistência, alimentou sua curiosidade para lugares além de qualquer fome jamais saciável. O homem dos cabelos rasos, que um dia viveu sua vida num jogo de soma zero contra a morte, agora vivia sua eternidade na busca do sono de uma borboleta. E assim como um devaneio que ao se perceber devaneio desaparece, assim que se fez eternidade, ela deixou de ser.
A borboleta, por fim, alcançou o cadáver pútrido de uma vaca deprimente, e de sua carne azulada removeu o néctar de sua existência. Saciada, a mesma voou mais alguns míseros quintilhões de centímetros antes de graciosamente ir ao chão com suas asas ainda abertas, porém imóveis. Lá, onde jamais deveria estar em vida, fez do mundo sua cama.
Acordado, o homem dos cabelos rasos olhou ao seu redor em busca da borboleta, realizado ao ver o fim do inacabável. Achava que seus pés já estavam sobre a cama da mesma, mas mesmo depois de procurar por anos e anos, não a encontrou. Antes que se perdesse no desespero de outra eternidade, dessa vez buscando a realização de uma realização passada, se deparou com seu próprio reflexo em pânico e pode ficar em paz. Havia percebido que sua rainha havia escolhido seus pensamentos como seu lugar de descanso, e todo esse tempo havia voado e dormido em sua cabeça.
As mãos do homem de cabelos rasos, como se não possuíssem nem dono nem forma, fluindo livremente para onde pertenciam, percorreram seu caminho e se afundaram sobre seu rosto. Pela segunda vez, o homem dos cabelos rasos entrara dentro de si mesmo.
Em outra mente, num neurônio qualquer, no que podia ser a folha de um bonsai ou o caule de um jequitibá, uma borboleta sonolenta choca de seu casulo mais uma vez.
por Kabezadegelo
ATO I
O homem dos cabelos rasos, assim chamado porque seu couro cabeludo havia passado a se assemelhar a uma piscina (não está vazia, mas dá pra ver o fundo), temia profundamente seu falecimento desde o dia em que percebera que seus cachos vagarosamente caiam e não tornavam a se erguer. Esse seu temor é indubitavelmente fruto da realização de seu envelhecimento, da qual a maioria é afortunada o bastante para alcançar gradativamente, de modo que a dor só aparece quando o indivíduo realmente percebe, e dali pra frente não há muito mais tempo pra senti-la de qualquer maneira.
O homem dos cabelos rasos, sendo o ponto fora da reta que era, não teve essa sorte. Em seu caso, a realização surrupiou sua felicidade num fragmento de um instante tão breve que outra pessoa, na mesma situação, poderia ter vindo a achar que o momento nem sequer realmente existiu e foi apenas um produto de sua imaginação. A parcela ignorável de um segundo pelo qual sua mente, em um surto enlouquecido, gerado por um fio solto na renda emaranhada da probabilidade, disparou a 10.000 cilindradas e de uma só vez teve todas as realizações capazes de serem tidas por todos os seres do universo conhecido sobre as consequências de envelhecer. Seu corpo, sem a liderança de seu cérebro, e num espasmo elástico, como uma tartaruga que de uma vez só retrai todos os seus membros de volta para seu casco, se atirou ao chão. A dor foi tanta e tão perfeitamente torturante que o mesmo, num insignificante indício de lucidez, indagou se talvez não seria melhor ter morrido naquele mesmo instante, já tendo, em sua mente, experimentado tudo que a vida havia de lhe trazer e o quanto não estava ansioso para fazê-lo novamente.
As consequências dessa brutal epifania não se limitaram ao já citado bater de asas de um beija-flor, e viriam a se realizar a cada princípio de ideia que tivesse. Entre as 300 bilhões de estrelas que se situam em nosso universo, das quais orbitam 3 trilhões de planetas, uma infinidade de luas e uma infinidade ainda maior de astros, sem levar em conta a outra infinidade de dimensões paralelas, que por si só contam com seu próprio infinito de unidades matemáticas, nenhum outro ser com semblante de consciência poderia dizer que teve toda sua percepção de si tão abalada quanto o homem dos cabelos rasos, tudo em menos tempo do que leva a natureza para tomar seu rumo fazendo a luz percorrer o interior de uma lente.
Enquanto levantava, pensou no quanto a anatomia humana dependia da coluna cervical, um conjunto de ossos e nervos com um prazo de validade que reduzia a cada momento em que ele sentava errado numa cadeira ou dormia num colchão velho. Cada passo dado sem usar os calcanhares, cada minuto dentro de um carro sem os ombros relaxados, cada momento em que não se agachava para apanhar suas chaves.
Enquanto passava suas mãos sobre o inchaço em sua nuca pensou nas possíveis ramificações que o impacto teria na sua massa cinzenta, e de que mil maneiras aquilo lhe afetaria negativamente no futuro, quando as células nervosas que morreram dolorosamente no baque lhe seriam piamente necessárias. Num flash, visualizou todas as vezes que esqueceria o nome de alguém ou deixaria algo cair de sua mão involuntariamente antes de suas palavras se arrastarem para criar uma desculpa.
Enquanto outros vinham ao seu apoio, ele, no mesmo tempo que levou para iniciar todo seu apocalipse pessoal, absorveu a essência da juventude perene que condenava todos aqueles seres de boa intenção e o cálculo exponencial de quantas vezes mais precisaria de ajuda nos anos que estavam por vir. Tristemente, beijou um adeus adiantado a sua independência.
Enquanto olhava para suas mãos pensava na composição química infimamente complexa e incompreensivelmente delicada de seu corpo, uma fábrica biológica que continuamente secreta material orgânico em sua jornada inevitável para a exaustão, fadada a produzir com cada vez menos eficiência até que um dia simplesmente não haja nada na linha de produção a não ser migalhas.
Independentemente do quão horripilantes esses pensamentos lhe poderiam ser, nenhum deles se comparou àquele que o fez o recluso hipocondríaco que ele viria a se tornar: o de simplesmente deixar de ser. Através de matemática básica, o homem dos cabelos rasos concluiu a gravidade de sua própria inevitável conclusão, porque se afinal, existir é alguma coisa, e não existir é nada, então qualquer coisa é automaticamente melhor do que sua não existência, apenas pelo fato de ser algo, e não nada.
Mas não se tratava apenas de não ter nada, como também não ser capaz de sequer chegar a realização de que nada mais resta, por nada mais lhe restar. Um único grão de cinzas, o quão patético possa ser, ainda tem esperança de um dia chegar a um ponto em que possa compreender sua própria existência e sua vida faça sentido, um grão de nada não possui nem sequer esse pelo menos.
Do que resta então para alguém tão focado em ganhar de um inimigo implacável, incomunicável, inabalável, inevitável e incompreensível se não passar o resto de seus dias vivendo sua vida como um jogo de soma zero, em que cada átomo e célula salvo é um ponto no placar contra o infinito.
É uma obviedade que viver de tal maneira, por mais que a tal tenha, em seu princípio mais enraizado, o intuito de economizar, tem os seus custos. Assim como o tolo que não preserva sua semente por preguiça, apenas para pagar as consequências com o resto de sua vida e a responsabilidade de ter um filho, o homem dos cabelos rasos pagava em vida o que ele tentava poupar da mesma moeda. Seus dias eram feitos de absoluto nada, contemplando, de olhos vendados, o mais íntimo vazio, para que assim não desgastasse sua visão.
Se poupava de andar para que assim não desgastasse seus joelhos, da mesma forma que se poupava de sentir para que assim não desgastasse seu tato. Se poupava de comer, para não ter de utilizar seu suco gástrico, tão ácido como era, e na mesma moeda, se poupava de beber para não atiçar os tão complexos sistemas líquidos que regiam sua temperatura corporal. Seguindo o exemplo de seu mestre, seu corpo se adaptou as ausências e decidiu parar de agir. Sábios poderiam argumentar que o mesmo se prendeu num loop de feedback, onde a mera existência da profecia acaba por realizar a si mesma, e eles estariam definitivamente certos. Talvez por esse motivo, ou talvez por vários outros, após certo tempo, seu cérebro finalmente cedeu de pensar, para assim não exaurir os seus neurônios.
ATO II
Milhares de anos depois, no que pode ser descrito como uma faísca sendo expelida do corpo de uma pilha que há séculos se derreteu e já para a terra e os céus de onde veio havia voltado, seu cérebro emitiu um pensamento, ou talvez, uma realidade. O homem dos cabelos rasos, ou a coisa mais próxima o possível de ser denominada com tais palavras, imaginou, ou talvez criou, uma borboleta, a rainha, por falta de contestantes, de seu mundo.
Durante um período que escapa a noção do tempo, o homem dos cabelos rasos observou o voo tortuoso da borboleta, com seus altos e baixos tão imprecisamente feitos que após um infinito passaram a ser perfeitamente padronizados. O fato de que ela jamais parou, durante todo o tempo em que ele havia a admirado, o levou a se questionar se borboletas jamais dormiam, e se sim, onde que faziam sua cama.
Se para matéria existe antimatéria, então para qualquer coisa que existe, seu oposto deve inexistir. Essa outra faísca, cuja existência é tão improvável que beira a inexistência, alimentou sua curiosidade para lugares além de qualquer fome jamais saciável. O homem dos cabelos rasos, que um dia viveu sua vida num jogo de soma zero contra a morte, agora vivia sua eternidade na busca do sono de uma borboleta. E assim como um devaneio que ao se perceber devaneio desaparece, assim que se fez eternidade, ela deixou de ser.
A borboleta, por fim, alcançou o cadáver pútrido de uma vaca deprimente, e de sua carne azulada removeu o néctar de sua existência. Saciada, a mesma voou mais alguns míseros quintilhões de centímetros antes de graciosamente ir ao chão com suas asas ainda abertas, porém imóveis. Lá, onde jamais deveria estar em vida, fez do mundo sua cama.
Acordado, o homem dos cabelos rasos olhou ao seu redor em busca da borboleta, realizado ao ver o fim do inacabável. Achava que seus pés já estavam sobre a cama da mesma, mas mesmo depois de procurar por anos e anos, não a encontrou. Antes que se perdesse no desespero de outra eternidade, dessa vez buscando a realização de uma realização passada, se deparou com seu próprio reflexo em pânico e pode ficar em paz. Havia percebido que sua rainha havia escolhido seus pensamentos como seu lugar de descanso, e todo esse tempo havia voado e dormido em sua cabeça.
As mãos do homem de cabelos rasos, como se não possuíssem nem dono nem forma, fluindo livremente para onde pertenciam, percorreram seu caminho e se afundaram sobre seu rosto. Pela segunda vez, o homem dos cabelos rasos entrara dentro de si mesmo.
Em outra mente, num neurônio qualquer, no que podia ser a folha de um bonsai ou o caule de um jequitibá, uma borboleta sonolenta choca de seu casulo mais uma vez.
por Kabezadegelo
Comentários
Postar um comentário