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Mãe,


Você disse que os fantasmas iam embora. Eu só precisava tomar os remédios e fechar os olhos. Mas esse não foi. Eu nem sei por que estou escrevendo. Não sei se você vai ler isso algum dia. Eu ainda me lembro da primeira vez que aconteceu. A vó tinha acabado de morrer. Quando eu te disse que ela tinha me contado uma história pra dormir, você me levou no hospital. O médico me fez um monte de perguntas. Eu estava triste, não tinha feito nada de errado, não entendi o que estava acontecendo. Ele te falou que não tinha nada de errado comigo. “Crianças lidam com o luto de forma diferente”. Eu não sabia o que era luto.

Você transformou minha adolescência num inferno. Quando eu te falei sobre o fantasma que me visitava você me levou no médico novamente. Eu já sabia o que era um psiquiatra. Você disse para ele que eu era desconectada da realidade. Que não sabia discernir o que era real e o que era ilusão. Foi nesse dia que começou. Minha dose diária de pílulas. O dia em que você me desligou do mundo.

Os fantasmas não pararam de aparecer. Enquanto eu caminhava pra escola. Quando eu estava no ônibus. No meio da aula. Pílula e fechar os olhos. Sempre funciona. Sempre funcionou. No resto do tempo eu estava muito anestesiada para entender qualquer coisa. Minhas notas caíram mas os professores tinham pena de mim. Você disse que eu não tinha culpa de ser assim. Quebrada. Lembro dos seus gritos quando eu faltei no dia que iam entregar o diploma. Você precisava aparecer nas fotos. Elegante, charmosa, a mãe modelo, que fazia tudo para ajudar a filha. Coitada da filha. Precisava tomar remédios pra viver.

Lembro da sua cara quando eu te falei que tinha conhecido alguém. Você não sabia mas eu comecei a tomar menos o remédio quando entrei na faculdade. Foi engraçado perceber que receber afeto das outras pessoas fazia os fantasmas irem embora. E quando eu estava com ele os fantasmas não apareciam. Quando eu fugi de casa você armou aquele circo. Mas eu não ia voltar. E eu não voltei.

Depois de um tempo, já não era mais suficiente. Os fantasmas voltaram. E quando ele percebeu que eu não era normal, ele também me deixou. Você estaria orgulhosa. Dele, é claro. Não foi o término mais amistoso. Pelo menos eu não atirei nele, como você fez com o papai. Tentei viver sozinha por um tempo. Agora eu realmente precisava dos remédios. E os fantasmas perceberam que eu estava sozinha. Agora eles apareciam mais vezes e eu tomava mais pílulas. Voltei a minha adolescência. Mofando no sofá, sem forças pra conseguir nada. Não ia pedir sua ajuda. Não pedi.

E foi aí que ele apareceu. O fantasma que não ia embora. Ele tinha uma máscara. Eu não conseguia ver seu rosto. Quando eu ia pra faculdade ele aparecia no ônibus. Eu tomava o remédio e ele sumia, apenas pra aparecer de novo mais tarde. Eu não queria mais ver ele. Tomei o frasco todo de comprimidos. Acordei no hospital. Eles não sabiam pra quem ligar e eu não disse pra quem ligar. Lembro de ter dito que eu era órfã. Consigo imaginar sua cara se estivesse ouvindo. Meu ex tentou me ligar mas eu não atendi. Não atendia há muito tempo.

O fantasma apareceu de novo, eventualmente. Ele se recusava a me deixar em paz. Ele começou a aparecer no meu prédio. E eu sabia o que precisava fazer. Deixei a porta aberta um dia e me escondi no armário. Já havia tomado meu remédio. Mas ele apareceu. Você mentiu pra mim. Eles não vão embora. Eu tinha pego uma faca na cozinha e pulei para fora, para assustá-lo. Ele escorregou e bateu a cabeça na mesa de cabeceira. Esse fantasma tinha um corpo. Eu tirei sua máscara. O rosto pálido do meu ex parecia uma daquelas caretas no livro que o doutor me mostrou quando eu era criança. Embaixo tinha escrito “Medo”. Vou parar de tomar os remédios, mãe. Eles não servem pra nada.




A Caçadora



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