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ESCHEREDRO

T. Sternberg em 1958

Trecho do Artigo “Escheredro de Sternberg – Geometria Irracional e Neoplatonismo”, de 1988
(...)                          
Maio de 1968 foi o mês em que o professor de matemática e lógica do Seminário de Viena, Dr. Sternberg (1894-1970), foi internado em Salzburgo. Sentia dores intensas atrás dos olhos e no músculo de mastigar. O que era pra ser um breve retiro de seu trabalho intenso agravou-se na manhã do segundo dia, quando acordou com febre forte.
O dia passou e com ele foi-se a febre; só para que retornasse mais forte na manhã do terceiro dia, se esvaindo da mesma forma que anteriormente. Também retornara o sonho que tivera na primeira noite, sonho o qual não tinha dado valor antes, mas que iria persegui-lo até setembro do mesmo ano. Durante esse período, temos acesso à parte de seus murmúrios no livreto “Diários da Febre”, publicado posteriormente.
Quando vinha o sonho, não que eu pudesse prevê-lo, lá estava a intrigante descoberta de meu cérebro adormecido: um poliedro impossível de ser compreendido e visualizado. Lá estava, em cima de mim e do deserto de meus sonhos, flutuando como um zepelim místico (...)”; “Era impossível que ele existisse, sua geometria estava toda errada! A palavra é essa, pois aquela amálgama de arestas e superfícies só poderia ter sido projetada por um artista de infinita incompetência, um design que nunca deveria funcionar em três dimensões. Mas aquele funcionava, um crime às leis da matemática! Não só existia, como eu era capaz de enxergar todos os seu milhares de lados, de arestas nulas, ao mesmo tempo, onisciente; e, no sonho, aquela aberração me parecia absolutamente trivial. Logo quando acordei, naquele domingo febril, peguei o primeiro lápis do caminho para desenhar o poliedro que vi em meu sonho, mas as tentativas foram frustradas”. T. Sternberg, Diários da Febre (p. 5)
Como um acadêmico de tradição profundissimamente monástica, Sternberg se debruça sobre as consequências lógicas de seu sonho durante alguns meses. Todavia, como mostra a própria cronologia do “Diário”, suas investigações mentais logo perdem o “núcleo-duro” de cálculos, conjecturas e diagramas e começam a investigar as consequências teológicas de seus “sonhos-animados/sonhos-vivos” (lebhaftertraum), e enfim descambam para a paranoia, o misticismo, a poesia e as famosas últimas três entradas, onde do brilhante cientista e professor emerge um completo perturbado irracional.
No deserto de meus sonhos-vivos, infinito plano de areia, eu caminhava lentamente sob a sombra confusa daquela forma. Que és tu, eu perguntava. A sua mera existência pusera por chão toda a tradição da trigonometria, desde Tales, até eu. Que um tolo professor universitário teria de tão importante para ficar frente à tão terrível revelação?”. (p. 72)

Rabisco de Sternberg em seu manuscrito. Na página seguinte, lê-se: "Uma esfera com arestas!!! ???" (sic)

O elemento de terror em seu sonho era o que batizara “escheredro” (Eschereder), um poliedro cuja geometria fosse fundamentalmente errada, que não pudesse existir sobre hipótese alguma – mas que existia em seu sonho-vivo. As consequências lógicas e ilógicas se desenvolvem: “Não é um círculo um círculo, perfeito na matemática, sempre imperfeito na natureza? Se eu enxerguei a possibilidade de existência de uma forma impossível, é porque ela existe e é possível!” (p. 6). Abruptamente, em “Diários”, essa linha de raciocínio implode quando ele começa a infiltrar seu misticismo cristão nas investigações lógicas – para Sternberg, o “escheredro” era o próprio demônio, ou melhor, o “anti-deus”:
O oposto de perfeito não é imperfeito. O perfeito é algo que, em todas suas qualidades possíveis, o é plenamente. O imperfeito é algo que tem potencialidade de ser perfeito, algo que está à caminho da perfeição, mas ainda não é... O oposto de perfeito, então, seria algo tão fundamentalmente quebrado, tão alheio a qualquer qualidade, que é impossível mesmo de que entre no caminho da perfeição. O oposto de perfeito é justamente o caos, o absurdo, o erro mais completo e irremediável” (p. 30)
Não somente seria o anti-deus, mas uma falha de Deus (Hauss, 1969) – uma blasfêmia feita forma.
“(...) Se Deus, em sua raríssima sabedoria, criou tudo o que existe, ele também teria criado aquela forma... Mas como era possível que Deus tivesse criado algo tão fundamentalmente errado, sendo ele o possuidor de toda a virtude? Partindo do pressuposto, a grave blasfêmia, de que Deus todo-poderoso pudesse ter falhado fundamentalmente na construção de algo – a existência desse algo nunca poderia falhar, e deveria funcionar de alguma forma; claro, pois Deus é infalível! Deus nunca poderia desenhar um projeto que não fosse a absoluta verdade. Padre Otto respondeu à minhas indagações dizendo que, se Deus dissesse que dois mais dois fossem cinco, toda a matemática iria deixar de existir como tal e iria passar a seguir a lógica do Senhor, e a afirmação de que dois mais dois são cinco seria a verdade objetiva da história.
Esse pensamento me fazia latejar os dentes. Aquela forma só poderia ter sido projetada por infinita incompetência, mas ainda assim funcionava, pois nada é impossível para Deus. Teria Deus errado uma única vez na Criação e criado algo que não poderia ser? Ou, teria Deus projetado algo absurdo meramente para testar os limites lógicos de seu próprio poder? Eu somente poderia descobrir ao estudar mais profundamente a forma, na esperança de que ela não fosse tão crassamente errada e, assim, eu recuperasse a crença na infalibilidade do Senhor, ou da matemática...” (p. 70)


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Obra de Maurits Cornelis Escher, desenhista cujo nome foi usado por Sternberg pra batizar a "forma"

Em setembro de 1969, um ano após o Incidente de Setembro, o padre, professor e colega pessoal de T. Sternberg, Otto Hauss publica o texto “O Diabo como uma simples Ideia”. Além de fazer um breve tratado teológico sobre as teorias de Sternberg (“afinal, haveria maior “falha de Deus” que o próprio Satanás?”), se aventura a categorizar os acontecimentos de 1968 como “paranormais” e “inquietantes para a racionalidade”.
“O sofrimento de meu amigo não se limitava ao cansaço mental que tais indagações provocavam – mas uma dor de cabeça terrível o afligia. Não mais nos músculos do rosto, como já tinha em costume, mas vindo de dentro da cabeça, como uma semente que brotava do centro de seu crânio. Ele acordava gritando e debatendo-se, dizia que o “seu cérebro ia sair pelos olhos”, numa dor tão intensa que ele mal conseguia respirar (o medo da equipe era que ele acabasse em asfixia!). Isso está intimamente relacionado com o que aconteceu em setembro daquele ano.”
Mesmo em julho de 1968, Sternberg lança para a direção da casa de repouso que sua intensa dor era uma “dor de parto”: uma vez que se resolvesse o “infatigável mistério”, ele teria trégua mental e física. Somente em setembro entram em um acordo e um psicanalista, S. Fuehler é convidado, para lhe fazer “terapia do sono”. Os planos de Sternberg, segundo testemunha, era de que “Fuehler tentaria pôr o paciente em estado de sonho lúcido, para que este o descrevesse a “figura” que via em seus sonhos; Fuehler então iria desenhar a imagem como lhe fora detalhada... A esperança é de que, uma vez que o professor visse o seu sonho, pudesse se curar da paranoia e da ‘dor de parto’ (...) Ou seja, já não teria dúvida se aquela forma era, de fato, impossível” (Kunt, 1974).
O tratamento alternativo aconteceu durante 3 noites, segundo relatório. Nas duas primeiras, Sternberg rejeitou violentamente o rabisco feito pelo psicanalista no papel, picotando as folhas de papel grosso, acusando-o de “não ter ao menos tentado”. Na terceira, todavia, algo deu muito certo – ou muito errado. O Incidente de Setembro até a atual edição deste artigo [1988] nunca foi devidamente explicado. A tentativa de impor a culpa a Sternberg nunca passou de tabloide e sensacionalismo, e nem ao menos chegou a ser investigada: a mera suposição de que um senhor de 74 anos teria tido força suficiente para fazer todo aquele estrago era claramente absurda.
Apesar de vir dum pároco obscurantista, o texto de Otto Hauss é o único que oferece uma explicação definitiva para o acontecimento...
“(...) Do lado do corpo completamente desfigurado do psicólogo, vi uma folha de papel em branco. Algumas semanas depois, Sternberg disse a mim, ainda em estado atônito, que “Fuehler dessa vez desenhou certo”. A dor de cabeça tinha passado completamente, ele jurava, mas não a paranoia. Essa piorara visivelmente. Restava pouco do brilhante matemático que conheci no seminário, agora havia apenas uma criatura caduca e esclerosada. Dizia que nunca mais sonhou com nada além de um escuro infinito, que “seus sonhos estavam vazios”. (...) Em ocasião, uma semana antes de entrar em coma, ele escreveu para mim um bilhete, que dizia: “Essa forma... É algo que não deveria existir em nosso mundo... Mas agora existe, porque foi trazida pra cá. Que Deus tenha piedade de nós”. (p. 2)
(...)

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