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Bestia rectum analis


por Dr. Klaus

Deitou-se na maca gelada e metálica da sala de exames. Uma auxiliar de enfermagem o ajudou a colocar uma bata de algodão azul. Sentiu mais frio ainda, mas não tinha o que fazer. “Deite de lado”, ela falou. “Virado para a tela do computador, senhor. Daqui a pouco a doutora chega”. Ele agradeceu sem saber bem por quê e esperou por longos e intermináveis três minutos a chegada da médica. Um seco “bom dia” foi tudo o que ela disse ao chegar. Ela olhava mais para o aparelho de ultrassom do que para o corpo do paciente. Em segundos, a doutora iniciou os procedimentos do exame, apenas mais um entre dezenas, provavelmente, realizados naquele mesmo dia.

- Qual o motivo do pedido?
- Tenho sentido umas dores e o médico pediu pra ver.
- Onde é a dor?
- Não sei direito, muda de lugar.

Apontou com o dedo indicador a altura do estômago e era como se a dor irradiasse para o fígado e outras partes do seu abdomem. “Certo”, “Vamos dar uma olhada”. Ela encostou o aparelho lambuzado de um gel frio na sua barriga. Suas pernas tremiam, não de medo (ainda) mas de frio.

A decoração da pequena sala não ajudava em nada. Tudo ali era desprovido de calor humano. As paredes de um azul esverdeado e não havia janelas. Um único objeto, um relógio, colado à parede e o ar condicionado, castigando os corpos, como um vapor gélido emergindo de um poço profundo. “Talvez seja assim a morte”, pensou, “apenas a falta de calor”.

Aquelas dores, como sempre, faziam com que ele pensasse na morte. Ele sabia que era hipocondríaco. Reconhecia que inúmeras vezes ia aos médicos por motivos fúteis. Desde a morte do seu pai, há poucos anos, os pensamentos mórbidos se tornaram ainda mais frequentes, quase incontroláveis. Sonhava até com o corpo inerte e pendular do seu pai, com seu rosto roxeado e a boca espumante. Não pensou que ele estivesse morto, mesmo daquele jeito. E nunca mais pisou naquela garagem. Nos sonhos, ele o encontrava andando, conversando, fazendo compras, com essa mesma aparência horrenda. Seu pai agia como se nada tivesse acontecido. Ele sempre interpelava o pai e cobrava dele um bom senso. “Não saia assim na rua, pai!” ou “Por que você não me pediu para fazer por você o supermercado?”. Acordava sempre assustado e, de uns tempos para cá, com essa dor aguda na boca do estômago. Toda esse sofrimento devia ter causado nele uma úlcera. Dessa vez, pensou, é algo sério.

- Não se mova! - falou a médica num tom muito acima da sua letargia inicial. Ríspida e visivelmente assustada.
- O que houve, doutora?
- Quieto! Não se mova! Não fale nada!

Nesse momento, como se o tempo parasse, sentiu um pavor profundo e um zumbido explodiu nos seus ouvidos. “É um câncer! É um câncer! Eu eu aqui pensando em uma simples úlcera”. “Puta que pariu, é um câncer!”. Os gestos da médica no aparelho se tornaram subitamente nervosos. Não tirava os olhos da tela do computador e ele tentava distinguir sem sucesso, entre as formas que surgiam e se dissipavam do ultrassom, algo que pudesse parecer um tumor, uma bola escura, qualquer coisa que justificasse a tensão aparente da médica. Ela pressionou com uma força absurda o aparelho na sua barriga, como se tentasse consciente ou inconscientemente penetrar na sua carne. Doía, claro. Ele gemeu de dor.

- Aqui, aqui! Meu deus! Jesus Cristo, o que é isso?!
- O que foi doutora? O que foi? – o choro agora era incontrolável.

A médica tremia as mãos, mas mantinha com a mesma força o aparelho fixo ao seu estômago.

- Tem uma coisa se mexendo, uma sombra ali, você consegue ver?

Ele olhava a tela e com dificuldade conseguiu reconhecer as paredes do seu estômago. Havia várias sombras ali, como ela podia ser capaz de perceber algo estranho?

- Aqui! Meu deus, olha isso! - apontou ela. Eu não sei o que é isso. É uma coisa viva.

Um pânico tomou conta do seu corpo num jorro de arrepios por toda a superfície da sua pele. Como assim, uma coisa viva?! Na tela, conseguiu distinguir uma forma contorcida, com certeza vertebrada, que se movia como se tentasse se esconder da luz que o aparelho lançava sobre a caverna estomacal. “Certamente não é  luz que incomoda”, pensou num instante de lucidez, mas era como se a criatura soubesse que estava sendo observada pelo aparelho e tentasse se encobrir, envolvendo seu corpúsculo com o que parecia ser asas, ou uma película anormal.

- É um morcego, doutora?

Depois de um silêncio demorado, a médica olhou pela primeira vez nos seus olhos. Enfim ela percebeu que havia ali uma pessoa e encarava seu corpo com olhar incrédulo, observando da cabeça aos pés o paciente. Sua expressão traduzia precisamente a incredulidade de estar diante de uma pessoa viva.

- Doutora, o que é isso aí dentro de mim?
- Não faço ideia. Seja lá o que for, você precisa tirar isso agora.

Ele chorava como uma criança amedrontada, um choro mucoso e patético. Sentia as dores mais fortes ainda e, em seguida, uma vertigem o fez perder completamente o fio cronológico dos acontecimentos desde então. Lembrou, ou achou que lembrou, ter visto outros médicos conversando, um grupo de 3 ou 4, talvez, diante da tela do computador. Viu a enfermeira chorando assustada antes de aplicar uma injeção em seu braço. Viu as luzes brancas do teto passando por ele, os longos corredores de hospital, muitas pernas e passos e, numa das visões mais perturbadoras, acreditou ter visto um corpo volumoso em uma maca coberto com um lençol.

Deve ter ficado ali horas ou segundos, não saberia precisar. Percebeu por debaixo da maca do cadáver uma corda comprida que saía do lençol na altura da cabeça e seguia até tocar a superfície do chão. Os médicos passavam e chutavam eventualmente a ponta da corda, indiferentes. Aquilo o deixou aflito. Mas não conseguia falar nada, talvez por conta da droga injetada em suas veias. “Tirem essa maldita corda! Tirem antes que... Malditos vermes!”

Lembra-se de ter semi-acordado em outro maca, em outra sala de hospital, com um tubo grosso enfiado em sua garganta. Uma tela grande mostrava as paredes do seu esôfago se abrindo como uma caverna escura, uma mina abandonada cujo fundo é desconhecido. A medicação não permitia que ele mexesse os músculos do corpo também. Podia ver, mas não podia falar. “Saiam da minha garganta!” Era tudo que passava pela sua cabeça confusa naquele momento. “Deixem ele quieto! Não mexam com ele! Vocês se arrependerão! Ele sabe se defender!”.

Finalmente, o canal estreito do esôfago se abriu. E surgiu na imagem a caverna rosada do estômago, molhada de líquidos esverdeados. Os médicos se detiveram em três riscos ulcerados na parede do estômago. Como três cortes de dois centímetros mais ou menos que indicavam uma espécie de unha ou garra. Houve um silêncio longo até que um dos médicos sugeriu que se voltasse a câmera para o duodeno, a fim de investigar a entrada do intestino, já que os estômago parecia vazio. Bem ali, no fundo, a caverna fazia uma curva escura voltando-se para uma outra câmara.

Assim que a luz do aparelho clareou essa entrada, pode-se ver uma sombra correndo para se esconder da luz, em movimento rápidos e nervosos, como uma mariposa, um morcego, um rato, uma aranha caranguejeira... sabe-se lá. Definitivamente era um animal. E não um animal daqueles que podem viver nos nossos estômagos, como os vermes, por exemplo. Aquilo era outra coisa. Quando finalmente a câmera chegou à porta do duodeno, a besta já tinha se ocultado no intestino e desapareceu nas vísceras do paciente. Apenas uma colonoscopia poderia agora tentar encontrá-la, compreendeu da conversa entre os médicos. Seria mais fácil se ela se encaminhasse, no intuito de se esconder, o mais próximo possível da região retal, avaliou um dos médicos. Ali a “captura” seria mais fácil, envolvendo menos riscos. Uma colonoscopia poderia ser arriscada, afungentando a fera novamente para as câmaras superiores... Enfim, muitas variáveis. Os médicos estavam, definitivamente, diante de um enigma novo e complicado.




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