O sol acabara de se por quando eles perceberam que a cerveja havia acabado.
- Pedro, cadê o resto da cerveja? - Gabriel perguntava diante de uma caixa térmica vazio.
- Ué, tá aí. Eu coloquei toda a cerveja aí dentro. - Pedro respondia levando um pedaço de carne à boca.
Gabriel volta irritado à varanda onde estão os outros dois. Pedro come vorazmente o final do churrasco, enquanto Carlos está encostado em uma das colunas com o olhar distante.
- Vai continuar com essa cara, velho? Já foi. O vagabundo mereceu.
- Ih, ele ainda tá nessa? - Pedro ri com desdém.
- Anda, Carlos, come um pouco antes que esse gordo acabe com tudo.
Carlos olha para as garrafas vazias, e anda em direção ao carro estacionado na frente da casa. Com o cair da noite, o coro de grilos e rãs começa a ser ouvido por todo lado. Os três amigos estão em uma chácara afastada da cidade. O imóvel pertence ao avô de Gabriel, já falecido. Seus pais moram no exterior, então o filho único tem acesso exclusivo à casa.
- Cara, tô preocupado. Se ele abrir o bico… - Gabriel sussurra.
- Não, maluco. Carlos é brother. Nunca que ele iria falar pra alguém. Até porque ele foi no mínimo cúmplice.
- É, tô ligado.
Carlos volta, e entrega uma garrafa a Gabriel.
- Eu trouxe vinho. Tinha esquecido no carro.
- Ah, garoto! Isso aí!
- De manhã a gente sai pra comprar mais, e aproveita pra se livrar do corpo. - Pedro fala com a boca cheia enquanto estende um copo para receber vinho.
Carlos anda até um interruptor e tentar acender a luz da varanda, mas não consegue.
- Ah, tenho que ligar o disjuntor. - Gabriel vai até um quadro de energia na parede tomando um gole da bebida.
****
No interior da pequena casa centenária, os móveis que antes estavam apenas empoeirados, agora estão fora do lugar. Um vaso que antes enfeitava uma mesa, agora se encontra espalhado em cacos no chão. Os pedaços de madeira e objetos no chão indicam que houve uma luta no meio da sala, enquanto as poças de sangue pelo corredor atestam para a gravidade das feridas de pelo menos um dos envolvidos. Ao lado da cama de casal do único quarto, uma porta no piso de assoalho esconde um porão.
No pequeno cômodo subterrâneo, há objetos que não são comumente encontrados em ambientes domiciliares. Uma centrífuga, um conversor de energia, uma balança para materiais grandes e pesados, e um quadro de energia com cabos espalhados pelas paredes. Sobre um balcão repousam tubos de ensaio, placas de petri, e vários tipos de vidrarias empoeiradas. Ao lado do balcão, jaulas enferrujadas e sujas exibem restos de pelos de animais grudados nas grades. Neste laboratório, o avô de Gabriel realizava experimentos que eram proibidos no seu departamento de anatomia na universidade. Na parede ao lado da escada, uma grande porta metálica se destaca.
Dentro de um cubículo escuro, um corpo negro e ensanguentado repousa no chão. Está encolhido sobre as pernas dobradas, num espaço onde não caberia uma pessoa adulta deitada. Ainda perdendo calor, o corpo, que se trata de um adolescente, exibe hematomas e cortes nos braços, tórax, e nuca. Fios de cabelo e pedaços de pele debaixo de suas unhas indicam seu esforço numa luta que não conseguiu vencer.
Um ruído discreto percorre toda a casa à medida que os cômodos são energizados. No laboratório, equipamentos há muito abandonados começam a funcionar. Cabos que percorrem as paredes até a porta metálica faíscam. Dentro da câmara, as paredes e o piso de aço conduzem energia para o corpo caído. Seus olhos se abrem.
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Com manchas roxas e cortes espalhados pelo corpo, Tiago caminha aos tropeços pelo laboratório deixando a porta da câmara aberta atrás de si. Ao se apoiar no balcão, derruba um conjunto de tubos de ensaio, e para diante de um caderno com o título Anotações de Lab na capa. Sua respiração emite um ronco contínuo enquanto ele folheia o achado. Uma página chama a sua atenção. Escrito em letras garrafais e às pressas está uma observação do dia 14 de novembro de 1912:
“Não consigo fazer o efeito durar mais do que uma hora!”
Tiago volta a andar pelo laboratório, agora tentando alcançar a escada. Percebe que sente mais força nas pernas, e o ruído de sua garganta está diminuindo. Tenta lembrar onde está, mas seus pensamentos são apenas um conjunto de imagens aleatórias surgindo e desaparecendo sem controle. Ele caminha com passos mais firmes, e alcança o corrimão. Nesse instante, consegue resgatar uma memória clara.
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Carlos entrega uma lata de cerveja para Tiago, que está sentado em uma espreguiçadeira velha diante de uma piscina suja. Ele aceita a lata, mas está desconfortável. Ainda não entende o convite que recebeu para o churrasco. Ele não é amigo de nenhum desses rapazes, apenas estudam na mesma escola. Está mais incomodado ainda por não ter sido exatamente convidado, mas por terem lhe oferecido carona de volta para casa, e depois desviado o caminho. Agora estava preso nesta chácara até Gabriel, dono do carro, decidir voltar para a cidade. Tiago não sabia como voltar, e não conseguia rede ou internet no celular.
Pedro confere o estado da carne na churrasqueira, e depois entra na casa. Tiago só lembra de ter passado por ele na escola uma vez, e num momento desagradável. Pedro estava brigando com um garoto mais novo, e na luta, quebrou seu braço. Aquele episódio quase causou sua expulsão, mas a poderosa influência de sua família acalmou os ânimos da diretoria e logo abafaram o caso. Praticante de jiu-jitsu e entusiasta de musculação, ele conseguia facilmente intimidar qualquer pessoa que não fizesse parte do seu convívio e não tivesse o mesmo porte físico.
Tiago ouve seu nome ser chamado de dentro da casa, e se levanta para atender. Ao passar pela porta, é atingido por um soco no lado direito do rosto. O impacto o faz cair sobre uma mesa e derrubar um vaso no chão. Gabriel se prepara para mais um golpe, quando Pedro chuta as duas pernas de Tiago, derrubando-o. Com uma dor forte na cabeça e a sobrancelha ensanguentada, Tiago não entende o que está acontecendo, apenas ergue uma mão.
- Não…por favor…
Gabriel e Pedro chutam suas pernas e costelas repetidas vezes.
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- Onde a gente vai dormir? Aí fora mesmo?
Bêbado, Pedro entra na casa falando alto e abrindo o zíper da calça. Anda até o banheiro.
Na varanda, Gabriel e Carlos começam a discutir.
- Cara, eu sabia que era pra dar um corretivo nele, não pra matar.
- Ah, velho, aconteceu. Também não era meu plano.
- Mas então porque tu matou? Tá maluco? A gente pode se foder com isso.
- Velho, tu acha que eu ia deixar barato? Se o cara deixa quieto, esses moleques ficam abusados. Tem que ser assim, cara. Concordo que não precisava matar, mas agora já foi. Bola pra frente.
Sem ter se dado o trabalho de acender a luz, Pedro termina de urinar no banheiro escuro. A única iluminação entra pela porta aberta, mas ele não se incomoda. Está tão bêbado que só abre os olhos quando precisa andar. Lavando as mãos, ele tateia a pia à procura de sabão. Não encontra, então abre os olhos para procurar melhor. É quando vê que a luz que entra pela porta está parcialmente interrompida. Percebe a sombra de um homem projetada no chão.
- Ih, não tá vendo que tá ocupado? Espera, porra. - resmunga enquanto passa sabão nas mãos.
Pedro caminha trôpego para sair, e a porta está livre. Ao passar por ela e chegar no corredor, encontra o cadáver de Tiago parado no seu caminho. Seus olhos vermelhos estão abertos, e Pedro tentar gritar, mas Tiago põe a mão dentro de sua boca, o polegar sobre o queixo, e arranca sua mandíbula com um gesto. Ele tenta fugir andando de costas, mas tropeça e cai chorando. Tiago pisa com força em sua canela direita, quebrando-a em vários pedaços. Enquanto emite um gemido agudo, Pedro é erguido pela camisa, e arremessado pela porta dos fundos.
Gabriel e Carlos ouvem o barulho.
- O maluco deve estar caindo pela casa toda. - diz Carlos.
- Deixa algo inteiro aí, hein Pedro! - Gabriel grita para dentro da casa.
Arrastando-se com rapidez sobre capim e lama, Pedro tenta escapar pelos fundos. Tiago caminha sem pressa atrás, quando tem outra lembrança.
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O ardor das costas ralando no chão o faz acordar. Tiago está sendo arrastado por Gabriel até a cozinha, onde Pedro espera com uma faca na mão. Carlos está com ele, mas não parece gostar do que vê.
- Galera, tá bom, já deu. O moleque já tá surrado. Ele vai aprender.
- Que nada, isso foi pouco. - Pedro se abaixa apontando a faca.
Tiago sente um chute na cabeça, e depois começa ter o peito cortado por Pedro, que ri a cada golpe.
- Ele vai aprender, ah se vai! - diz Gabriel, sorrindo sobre ele.
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Carlos entra na casa à procura de Pedro, e se assusta com o sangue no corredor.
- Gabriel! Gabriel!
- Que foi? - Gabriel surge na porta.
- Vocês limparam todo o sangue?
- Sim, por quê?
- Chega aqui.
Os dois seguem o rastro do sangue até a cozinha, onde encontram uma mandíbula caída na frente da pia.
- Cara, que porra é essa? - Gabriel se assusta.
- Quem fez isso?
Carlos e Gabriel vêem a porta dos fundos pendurada por apenas uma dobradiça, e observam um rastro na lama seguindo em direção as árvores.
Munidos de faca e um taco de madeira, os dois seguem o rastro nos fundos da casa. Chamam por Pedro, mas não obtém resposta. Atravessam uma cerca de plantas, e as marcas no chão desaparecem. Um barulho na casa chama sua atenção, e eles voltam correndo para o interior.
Os ruídos continuam. Gabriel identifica a origem. Estão vindo do quarto de seu avô. Chegando nele, Gabriel fica ainda mais assustado ao ver a porta do porão aberta, e perceber que o barulho está vindo lá de baixo. Os dois começam a descer, mas Carlos volta ao ouvir um barulho na frente da casa.
O porão está coberto em penumbra. A única fonte de luz vem da porta aberta no teto, que ilumina apenas a escada. Na metade do caminho, Gabriel ouve gemidos, e vê uma silhueta na parede à sua frente. Quando seus olhos se adaptam ao escuro, ele tem a visão mais terrível de sua vida. Pedro está acorrentado do lado de fora de uma jaula, com uma ferida enorme na parte inferior do rosto, e sem os braços e pernas. Está perdendo a consciência, e muito sangue.
- Meu Deus...
Descendo mais um degrau, Gabriel tropeça num cabo grosso, e cai rolando pelos degraus seguintes. Assim que pisado, o cabo esticado volta com pressão para uma parede, onde bate e em seguida cai sobre uma poça no chão. O contato produz chama, e em poucos instantes todo o piso encharcado de combustível é incendiado. Gabriel consegue correr de volta para a escada a tempo apenas de apagar com tapas o fogo em sua bermuda, e ver as chamas subirem pela parede oposta cobrindo todo o corpo de Pedro. Ele sobe correndo e se joga no chão do quarto.
Saindo do quarto para checar o barulho que ouviu, Carlos vai até a varanda. Continua a ouvir o ruído, agora mais alto, e percebe que é o motor do carro ligado. Aproximando-se com cautela, ele encontra a porta do motorista aberta. Entra, senta, e tateia a ignição à procura da chave, mas não a encontra. Quando se abaixa para tatear o chão, a porta é batida com força, quebrando o calcanhar de seu pé que estava do lado de fora. A dor latejante o faz gritar, e puxar sua perna para dentro por reflexo. A porta bate mais uma vez, e todas as travas são trancadas. Ele tenta inutilmente abri-las, quando vê Tiago parado à frente do carro. Sua forma cadavérica é assustadora. A cabeça careca coberta de hematomas e cortes, a barba negra com sangue seco que parece estar prestes a escorrer, e os olhos. Os terríveis olhos vermelhos que não transmitem ódio, mas indiferença.
Carlos sente um cheiro forte, e percebe que o gás do cano de escape está sendo redirecionado para dentro, embora ele não consiga identificar o ponto de entrada. Tenta quebrar as janelas aos socos e pontapés, mas seus membros estão cada vez mais fracos. Sua vista fica turva, e tudo parece girar.
De frente ao carro, Tiago assiste à sua morte. Enquanto observa a fumaça ocultar toda a vista do interior do carro, outra memória é resgatada.
****
Com o gosto forte de sangue na boca e quase todos os dentes caídos ou quebrados, Tiago é arrastado pela casa. A cada movimento, suas costelas quebradas pressionam mais o pulmão, e cada fôlego dói mais que o anterior. Chegando ao quarto, Pedro força o ferrolho enferrujado da porta do porão. Pisando sobre o diafragma de Tiago, Gabriel dá seu recado final.
- Isso é pra aprender a não mexer com a namorada dos outros, otário. Tava conversando com ela por quê? Tirando dúvida da aula? Ela é professora, por acaso? Agora tu vai aprender a ficar esperto.
A porta é aberta, e Tiago sente seu corpo rolar escada abaixo.
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Com as pernas queimadas, Gabriel recolhe a faca que deixou cair, e se apoia na cama para ficar de pé.
- Puta que pariu! Puta que pariu!
Caminha com esforço para a sala, onde encontra Tiago parado na porta de entrada.
- Mas que porra…
Gabriel enterra lentamente a faca na barrica fria e sem vida de Tiago, que não demonstra se importar. Com a traseira da mão esquerda, ele acerta o queixo de Gabriel, arremessando-o sobre a mesa, que agora se separa de suas quatro pernas e vai ao chão.
Cuspindo sangue, Gabriel levanta num surto de adrenalina, e tenta derrubar Tiago projetando seu corpo contra o dele. O morto-vivo nem mesmo move os pés, e o contato com sua pele gelada tem mais impacto sobre Gabriel do que qualquer golpe. Ainda assim, Tiago ergue seu assassino pelo pescoço, e o arremessa no fim do corredor, batendo com as costas na pia, e quebrando uma pequena mesa de ferro.
As chamas do porão alcançam o quarto, e a fumaça já se espalha por toda a casa. Tiago vai até Gabriel, que apenas geme no chão, sentindo o que parece ser a coluna fraturada. Senta-se ao lado dele, e aguarda o fogo consumir seus corpos.
Carlos Tollipe
Carlos Tollipe
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